quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Opinião: O tempo do palimpsesto, por Mónica Magalhães

O TEMPO DO PALIMPSESTO,
por Mónica Magalhães (*)

Nasce este texto no dia que Umberto Eco se pronuncia sobre as maleitas provocadas pelo olvido da arte de bem escrever à mão.

Em epitáfio, celebro os tempos em que a pele e a tinta se comprometiam em núpcias, ora arrebatadoras ora brandas, com um pedaço de papel. Branco, imaculado. Ora o mapeavam com prolepses, retrocessos ou hesitações de memória. Actos loucos que guiavam a pena indómita em subidas e descidas, tentada pelo fulgor das palavras que carmeavam o papel. Gestos sedutores de linhas, amistadas, que, com cautela, coração partido e alguns beijos atirados à lua, tremelicavam por entre rabiscos. Paixões sufocantes com a mão arredada e as veias a latejar, cortadas pelo amarfanhar impiedoso da folha lançada ao lixo, sem direito a reciclagem. Rasgos pueris, em que as letras se desenhavam coradas, oriundas da camada de pele mais distante do sangue que seiva e ceifa o coração. Amores não correspondidos que glaciavam e adormeciam a mão, esboucelando em lágrimas o papel. Uma arte que, lampejada agora no pó das arcas, se tornou impiedosamente em arcaísmo. As letras sentem-se com este apartamento, e os textos desmancebam-se, indubitavelmente. Excede-se a distância pessoana necessária.

Pele, tinta, sangue e papel. As linhas da vida, os quatro elementos doutra terra. As parcas da ressurreição.

Só o palimpsesto pode salvar. Escrever de novo. Não de um modo messiânico, não numa reinvenção à Negreiros, mas num sentido radicado, de depuração do verbo e de cristalização do impronunciável. Voltar à lavra da palavra. Às histórias de suor porque de pele. Às novelas de feridas porque tacteadas. Aos contos de sangue porque de corpo debruçado sobre a tinta, de olhos voltados e coordenados com os andamentos dos parágrafos. Ora pianíssimos, ora repletos dos malfadados pontos de exclamação! Um retorno à escrita com todos os sentidos alinhados pela prosódia das frases.

Os escritores, os que foram expulsos do Paraíso pela palavra original, são seres maiores. Natos das núpcias permanentes entre os quatro elementos, adquirem a aparência humana, mas, na verdade, excedem-se e esventram-se em feições incapazes de exibir todas as suas almas abertas. Os corpos que tomam chegam a parecer iguais aos demais, apenas porque as imensas cicatrizes que os rasgaram se habituaram a acomodar-se e a ganhar a mesma tonalidade rosada.

Estes seres de berços de luz vivem e são viciados no seu ofício, ao jeito de Rilke. Espantam-se com as metamorfoses dos dias, mas não esquecem a posição com que os seus corpos se devem manifestar: a fetal. Vivem na infância, alimentam-se de ázimo consagrado e habitam na soleira desta terra. São seres plurais. Carregam a maior das solidões, mas são os mais comunitários. Porque cosmógrafos, grafam o mundo nas suas histórias. Se os seus rostos fossem transparentes, ora os veríamos desfigurados, mutilados, mascarados, belos como os dos arcanjos, sufocantes como os do purgatório.

Feliz de mim que me cruzo diariamente com algumas destas faces, com quem construo escadas devotas até ao parto de textos de luz, absolutos. Neste lar do livro e do escritor, temos procurado trabalhar géneros esquecidos de sempre, os mais primitivos, dantescos, bíblicos e no imaginário até das lendas mais antigas: os que logo provam e expugnam o maniqueísmo de que somos feitos. Bestiários. Anjos e demónios. Negação e afirmação. Redimimos os nossos crimes e expiamos as batalhas interiores nos policiais, ressuscitamos e atingimos a eternidade com os vampíricos.

Bem-aventurada sou por fazer parte deste confessionário dos sonhos, em que são muitos os que aspiram a este mundo de eleitos, de seres abençoados. Mas onde se concretizam também encontros para além da soleira, evocados e certeiros: as vivências trinitárias com que a Soror Flâmula me prendou; a incursão pelas ruas sinestésicas de Córdova que calcorreei com a mesma avidez de Ouroana; os sorrisos menos cromados que o cadáver feliz me arrancou; os violinos que alguns dos meus sonhos almejam tocar.

Que estes sacrários da língua universal, essa que o escritor que invoco no início deste texto fala com certa nostalgia, se dêem a conhecer. Talvez tudo comece com a resposta à questão vergiliana: «Qual a tua palavra essencial que o próprio Deus desconhece?» Fiat lux.

(*) Mónica Magalhães (n. Marco de Canaveses, 1980) é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas e pós-graduada em Literaturas Românicas pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Exerceu a docência no ensino secundário e colaborou no departamento de livros da Fnac. Desempenha, desde 2005, funções de coordenadora editorial na divisão literária do Porto da Porto Editora.
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