sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Opinião: O modelo Papa-Figos, por José Vegar

O MODELO PAPA-FIGOS,
por José Vegar (*)

Num tempo não muito longínquo, até 1997, mas certamente numa galáxia hoje muito distante no que se refere à capacidade de acesso aos mercados globais e competitivos, comprar uma edição anglo-saxónica ou francesa em Portugal era um bom contributo para o desenvolvimento vertiginoso de um cardápio de doenças mentais. Os que, por casmurrice ou necessidade existencial e profissional, se envolviam no processo conheciam as duas vias possíveis. A primeira era pedir o livro na meia dúzia de livrarias que prestavam o serviço e estar preparado para o início do sofrimento prolongado: um enorme tempo de espera, que podia chegar a meses, e um preço demencial, por causa do célebre «imposto livreiro» proteccionista. A segunda era aproveitar uma deslocação ao estrangeiro, preferencialmente a Londres, Paris ou Nova Iorque, para atacar por grosso. Tal implicava, obviamente, a gestação espontânea de problemas na coluna e o pagamento, no aeroporto, da taxa de sobrecarga de peso. Pelo meio, os peritos forçados debatiam alternativas. Lembro-me, nos anos 1990, de um famoso momento em que optei, a partir de Chicago, por um serviço postal americano, a UPS, que tinha aberto em Portugal. O pacote chegou, rápido e sem problemas para a minha coluna vertebral, mas paguei mais de direitos alfandegários do que o preço dos 60 livros. Além disso, o homem da UPS que me bateu à porta, a suar e um pouco dobrado, comunicou-me, com toda a seriedade, que o core business da UPS eram encomendas até cinco quilos, e não «blocos de cimento destes».

Até que, aí por 1996, o «Papa-Figos» começou a cantar no seu monte alentejano. A coisa começou a circular por boca-a-boca e, a princípio, julguei que era mais uma fantasia dos círculos intelectuais lisboetas, desesperados por um mercado sufocante. De uma forma resumida, eis o que consegui saber na altura. Havia um mad English na Aldeia da Serra, uma povoação entre Estremoz e Redondo, que encomendava edições inglesas ao preço de origem e as entregava ao cliente numa semana. Obtive o número de telefone e liguei, muito céptico. Do outro lado, atendeu-me o Paul, o mad English. Era mesmo verdade, e a logística, explicou-me ele, num tom de voz impassível, como se desconhecesse a revolução que tinha desencadeado, era muito simples. Os clientes telefonavam a pedir um livro, para tal indicando o título e o autor. Ele verificava na sua base de dados, composta por dois milhões de entradas. Se o livro constasse nessa base, era encomendado. Todas as semanas, um camião fazia o percurso entre o Reino Unido e a Aldeia da Serra com os livros pedidos. O Paul colocava os livros em embalagens e mandava-os pelo correio, à cobrança. E assim, tranquilamente e com uma eficácia tremenda, os leitores portugueses acediam ao paraíso. Lembro-me, com enorme saudade, de várias coisas incríveis da Papa-Figos: a qualquer hora do dia ou da noite, e estávamos ainda na era pré-telemóvel, o Paul atendia sempre. Não havia um título que ele não arranjasse, dos académicos obscuros aos bestsellers. Nunca esperei mais de uma semana por um livro. Os preços eram baixos.

Dois anos depois, a Amazon matou a Papa-Figos. No entanto, nos dias de hoje, quando a distribuição — associada a um tempo de rotatividade dos títulos em prateleira absurdamente curto e à invisibilidade dos géneros não mainstream — é talvez o maior problema da edição em Portugal, penso cada vez mais na Papa-Figos. Uma operação de distribuição inovadora, que sirva o cliente com carinho, que permita aceder com eficácia a todos os títulos que procura e que, no fundo, rompa os circuitos dominantes, terá certamente o seu espaço e o apoio espiritual e material dos que gostam de livros.

(*) José Vegar é autor dos livros de ficção Cerco a um Duro e A Balada do Subúrbio e dos livros de não-ficção O Inimigo Sem Rosto – Fraude e Corrupção em Portugal (com Maria José Morgado) e Serviços Secretos Portugueses. Frequenta o doutoramento em Sociologia no ISCTE.
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