O ESCRITOR É UM GUALDRIPADOR,
por Rui Couceiro (*)
Escrevi este texto em dois dias e, entre um e outro, o segundo bem mais produtivo do que o primeiro, vi o programa Conversas de Escritores; o entrevistado era Ian McEwan.
Quando José Rodrigues dos Santos, no papel de entrevistador que também escreve, lhe perguntou se, para entrar na mente de uma mulher e criar uma personagem feminina, costuma fazer pesquisa, o inglês respondeu: «My life is my research.»
O fantástico na vida de escritor – exclua-se aqui, abertamente, o autor de romances históricos, embora outros que os não escrevem façam igualmente pesquisa para ficcionar – é que ele documenta-se vivendo; investiga e inspira-se no dia-a-dia.
Não digo que escrever não seja um trabalho; não pretendo que se infira que sou da opinião de que os escritores nada fazem. Não é isso. Pelo contrário. Considero, isso sim, que uma qualquer saída de casa, para um escritor, não deve – nem pode – ser encarada nunca como uma perda de tempo. Em última instância, para além de estar na rua a passear sem destino, a ver um filme no cinema ou a jantar num restaurante, o escritor tem sempre a oportunidade de estar a trabalhar. E, nessas situações, pode absorver, para usar nas suas (re)criações, ruas e fachadas, horizontes recortados ou harmoniosos, silhuetas e perfis, tons de voz ou sotaques, penteados, diálogos e até pensamentos, sejam eles verbalizados ou apenas por si imaginados.
Assim, gualdripar pode ser bom. Gualdripar à realidade. Gualdripar é parte do trabalho do escritor, é trabalhar.
Só isso permite a um génio como Saramago criar personagens extraordinárias como uma Blimunda, dois Tertuliano Máximo Afonso ou até colocar no papel de protagonista um elefante caprichoso que vale por três ou mais. O velho, de Hemingway; Humbert Humbert, de Nabokov; o jogador, de Dostoievski; toda uma classe social, em Redol ou em Soeiro Pereira Gomes; uma região inteira, em Manuel da Fonseca ou em Urbano Tavares Rodrigues; uma cidade, em Raul Brandão; irmãos em incesto, em Eça; Mylia e outros loucos, em Gonçalo M. Tavares; o binómio Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Stevenson; e muitos outros que também me marcaram – seriam possíveis sem um pouco de gualdripanço? Com certeza que não.
Vou, portanto, passar a recomendar aos autores com quem trabalho que digam sempre que estão a trabalhar, qualquer que seja a circunstância. Ou a gualdripar, para fugir a termos passíveis de interpretações indesejáveis.
Devo assinalar, então, que o gualdripanço é, para mim, e porque popular como entendo o trabalho dos escritores, a mais elevada das palavras da família semântica dos roubos.
Chegado aqui, e recordando as personagens usadas como exemplos, já não sei se foram gualdripadas à realidade, confesso. Isto porque, se o foram, já os autores as devolveram à existência, em versão revista e aumentada, como colonos do imaginário de gerações e gerações.
Há ilícitos que valem a pena e não devem ser censurados – até as crianças o sabem, através de Robin dos Bosques, essa fantástica personagem que quem pode garantir não ter sido, em parte, gualdripada a uma existência real? Tal como o foi o verbo «gualdripar», que, qual vingador do meu próprio desconhecimento, furtei ao Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, para não dizer que os escritores roubam.
(*) Rui Couceiro nasceu no Porto há 25 anos. É licenciado em Comunicação Social e concluiu um Mestrado um Ciências da Comunicação. É assessor de comunicação da Porto Editora desde Janeiro de 2007.
-Consulte a oferta de formação da Booktailors na barra lateral do blogue.