segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Opinião: O lugar dos livros, por Jorge Colaço

O LUGAR DOS LIVROS,
por Jorge Colaço (*)

Durante alguns anos, já lá vai bem mais de um quarto de século, quase todas as manhãs descia o Chiado, vindo do Bairro Alto, e passava revista a todas as livrarias que encontrava pelo caminho ou, num circuito menos óbvio, as que fazia por encontrar.

As novidades eram muito menos frequentes e os livros permaneciam durante muito mais tempo no seu lugar. O lugar deles era, como parece natural, nas prateleiras, devidamente ordenados por critérios que se aprendiam muito facilmente olhando para elas. As livrarias eram a habitação dos livros. Moravam lá. E, em cada uma dessas morada, havia um certo número de livros diferentes dos que moravam nas outras. Com eles, estabelecia-se uma intimidade construída na constância e na fidelidade. Eles estavam ali e eu visitava-os assiduamente, assegurando-me de que continuavam ali e que ninguém tinha vindo perturbar a possibilidade, certa na intenção mas incerta no tempo, de entrarem na minha posse.

Nessa época, para o comprador desabonado que eu era, o perigo consistia no desaparecimento súbito e irremediável de algum livro infrequente longamente cobiçado. Então, para me salvaguardar dessa previsível perda, punha em prática o sistema de retirar o livro, cuja compra tivera de adiar por motivos de força maior, do seu lugar, subtraindo-o à lógica que presidira à sua arrumação. Assim, pensava eu, tornaria, talvez, o livro invisível, muito certamente inencontrável.

O sistema funcionava quase na perfeição. Não na perfeição, pois, muitas vezes, alguns dias depois, o livro, objecto de zelo arrumativo, regressava ao lugar que lhe pertencia por direito próprio e por dever do livreiro e dos empregados. Se isso acontecia, o procedimento transgressor tinha de ser repetido, por vezes o livro tinha mesmo de ser escondido atrás dos que se perfilavam na primeira linha das prateleiras.

O tempo mudou e ela não voltou. Neste caso, ele, o tempo em que aquelas coisas aconteciam. Há dias, entrei numa livraria (sim, sim, uma dessas que são várias, mas todas tiradas a papel químico) e, entre a dor e o riso, lá fui dando conta dos muitos livros novos que havia, que títulos lhes tinham posto e quantas capas parecidas umas com as outras se propunham à clientela. Eis senão quando… me deparei com um livro que conheço (sobre o qual até fiz um breve filme). O problema é que o dito livro (Teatro Infantil: 15 peças de palco, de Fernando de Paços, Editorial Verbo, 2008) habitava, coitado, uma secção a abarrotar de títulos mais ou menos esotéricos, que confinava com uma outra, igualmente caótica, onde se misturavam psicologias, terapêuticas e pedagogias tutti-frutti.

A hipótese de alguém ter escondido dois ou três exemplares do Teatro Infantil era francamente remota, pelo que resolvi chamar a atenção de uma funcionária. Atendeu-me com ar céptico, incrédulo mesmo, mas resolveu de imediato: «Ah, pois é, está mal colocado, é aqui do lado, da pedagogia». Aí, franzi eu o cenho: «Pedagogia? Mas isto não é pedagogia!» A resposta veio, prontíssima: «Quem compra isto? Não são as crianças, são os professores. Por isso, é da pedagogia.» E, para fazer valer o seu argumento e eliminar qualquer equívoco, folheou o livro para me certificar de que não tinha bonecada para crianças. Era, sem dúvida, para professores.

Perguntei então: «Esta livraria tem uma secção de teatro?» À resposta afirmativa, continuei. «Pois é lá que deveria estar, pelo menos um exemplar deveria estar lá. Se eu viesse comprar este livro, era lá que iria procurar em primeiro lugar. Ou não?»

Por essa altura, a funcionária atingira o limite da paciência. Virou-me as costas ostensivamente e pronunciou um «está bem», cuja prosódia revelou a ausência, muito notória, da palavra «abelha».

(*) Jorge Colaço (n. Ferreira do Alentejo, 1956) é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ensinou Português como Língua Estrangeira, exerceu actividade docente no ensino secundário e criou um curso livre de redacção e revisão, do qual foi coordenador e professor. Desempenhou, desde 1992, funções de coordenador editorial da área de Humanidades da Enciclopédia Verbo – Edição Século XXI (29 vols., 1998-2003), para a qual também redigiu dezenas de verbetes. Assumiu funções idênticas em outras obras de referência, nomeadamente nos volumes Annualia. Colaborador de Biblos - Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, tem publicado textos críticos e literários em obras colectivas e revistas.
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