Com o título «10 destinos 10 livros», João Morales e Sara Figueiredo Costa falam de 10 livros em que «a narrativa ficará para sempre refém do espaço onde decorre». Tema de capa na revista Os Meus Livros deste mês.
«Rio de Janeiro
“Rio de Janeiro – Carnaval no Fogo”
Ruy Castro
Edições Asa
Conhecedor profundo das personagens, histórias de rua e hábitos dos cariocas, Ruy Castro foi a escolha certeira para integrar a colecção ‘O Escritor e a Cidade’ com um volume sobre o Rio de Janeiro. A história da chegada dos portugueses está lá, bem como a perpétua troca de costumes, imposições e genes (claro!) que ajudou a definir os contornos da cidade, mas o livro deixa de lado a arrumação de factos em jeito de manual e avança sem barreiras para o registo de histórias num tom de conversa informal que enriquece a visão do visitante (e a imaginação do candidato a visitante) com o olhar enternecedor de quem conhece a cidade por dentro.
As lendas urbanas, as peripécias de botequim, os episódios do passado relatados com a presença das personagens e factos que todos conhecemos, mas sempre do ponto de vista das vivências e das paixões compõem um quadro em que a humanidade se mostra no seu esplendor absoluto, entre as misérias e as maravilhas de todos os quotidianos, e em relação permanente com os espaços que configuram a cidade maravilhosa. A cidade do Carnaval, das praias em agitação constante ou da paixão pelo eterno duelo Fla-Flu (Flamengo e Fluminense, equipas de futebol) é a mesma das favelas cercadas pela polícia ou dos assaltos por esticão; paraíso sem imperfeição seria uma eterna monotonia. SFC
Praga
O Golem
Gustav Meyrink
Vega
A lenda do Golem terá a sua origem nas “Homilias”, de Clemente de Roma, e na lenda do homúnculo criado pelo Mago Simão, e é difícil passar por Praga e pelo impressionante Bairro Judeu sem lhe encontrar pelo menos uma referência. Judah Loew, um rabi do século XVI, terá criado um ser a partir da lama, animando-o para proteger os judeus de Praga, mas sem conseguir dotá-lo de uma alma. O livro de Meyrink, atravessado por conceitos e teorias com raízes nas diferentes correntes místicas que o autor estudou, apresenta uma narrativa fragmentária que tem Athanasius Pernath como personagem central e que explora a metáfora do homem sem alma com todas as consequências que daí advêm, como a inexistência da culpa. E a cidade de Praga, com os seus espaços fortemente relacionados com a lenda do Golem, assume um papel central no romance de Meyrink, equiparável ao de uma personagem principal, mais do que ao de um cenário. Em 2007, José Feitor e Luís Henriques adaptaram parte do romance de Meyrink e criaram “Babinski”, editado pela Imprensa Canalha, uma reunião feliz de texto e imagem que perscruta sentidos e metáforas presentes no romance, configurando-os numa outra leitura. Fugindo a Kafka (que não deixa de recomendar-se, claro), os dois livros serão um óptimo bilhete de ida; o regresso é por conta e risco do leitor. SFC
Moscovo
A Vida de Sonho de Sukhanov
Olga Grushin
Bizâncio
Anatoly Sukhanov é um promissor artista plástico que troca a expressão das suas dúvidas e convicções por uma confortável posição no aparelho comunista soviético. Silenciadas as questões conflituosas, a sua vida será marcada pelo luxo que poucos compatriotas seus conhecem até ao momento em que o que estava adormecido se torna turbulento e exige reflexão. O confronto entre a ilusão e a consciência podia integrar qualquer enredo, tendo em conta a sua universalidade e a eterna relação com os desígnios daquilo a que chamamos ‘natureza humana’, mas a sua localização nos anos decadentes (e nem por isso menos férreos) do regime comunista da União Soviética, e a escolha de Moscovo como espaço onde o passado e o presente de Sukhanov se enfrentam, fazem deste um romance particularmente interessante para uma passagem pela capital russa. Para lá da presença constante de espaços e monumentos que são verdadeiros ex-libris da cidade, como o Museu Pushkin, as torres do Kremlin ou o teatro Bolshoi, o romance de Olga Grushin permite, no percurso entre o passado e o presente de Sukhanov, uma visão da evolução urbanística de Moscovo nas últimas décadas, sempre relacionada com as mudanças sociais, politicas e económicas que a história registou e que a arte, frequentemente, reflectiu. SFC
Nova Iorque
Cidade de Vidro
Paul Auster, Paul Karasik e David Mazzucchelli
Edições Asa
Escolher um livro onde Nova Iorque assuma um papel essencial é tarefa ingrata. Henry James, Rex Stout ou John dos Passos não perdoariam a preterência, mas a sugestão é a “Cidade de Vidro”, adaptação para banda desenhada de uma das novelas da “Trilogia de Nova Iorque”, de Paul Auster.
Sem nenhum dos tiques que costumam manchar as adaptações literárias para bd, frequentemente redundâncias que se limitam a ‘contar aos quadradinhos’ o que havia sido escrito, Karasik e Mazzucchelli, com a colaboração do próprio Paul Auster, criam uma obra que coloca a exploração das formalidades da linguagem da bd ao serviço de uma narrativa que tem a cidade como elemento axial.
A partir de um texto que vive da fragmentação narrativa, das histórias cruzadas e das indagações em torno da linguagem, “Cidade de Vidro” adopta uma abordagem gráfica receptiva à experimentação, à utilização de outras linguagens (como a infografia) e a uma incansável procura de soluções. O resultado transforma o labirinto verbal e narrativo de Auster numa exigente sequência de imagens onde a cidade se desdobra em reflexos enganadores, dédalos de ruas que passam do mapa para o cérebro das personagens e ilusões que cruzam o verbal e o visual. Não será a Grande Maçã dos bilhetes postais, mas fará de qualquer viagem um mapa de interrogações sobre o que se vê. SFC
Algarve
Nunca Diremos Quem Sois
Urbano Tavares Rodrigues Europa-América
Longe da imagem paradisíaca que muita gente persegue nas suas férias algarvias, Urbano Tavares Rodrigues traça aqui um retrato cru de uma certa burguesia endinheirada, povoada por negociantes, empresários e alguns bandidos assumidos, que se refugia no luxo meridional para um descanso que nunca abandona os vícios de todo o ano. Imagem de um mundo onde tudo se compra e vende, a Cidadela de Alvura esconde segredos e muitas fachadas que se desmoronarão à medida que a narrativa caminha para o seu epicentro dramático. E apesar de algum panfletarismo no assinalar da diferença entre os que resistem ao sistema e os que dele se alimentam ou nele se deixam viver, o romance de Urbano não deixa de convocar uma reflexão necessária, sobretudo pelo modo como expõe a hipocrisia de gestos, escolhas e atitudes premeditadas disfarçadas de felizes acasos de Verão.
Se a ideia é passar umas férias despreocupadas, o melhor é lê-lo com algum distanciamento, procurando não detectar nos vizinhos banhistas nenhum dos tiques das personagens. Para veraneantes mais novos, sugere-se uma leitura mais inócua, por exemplo, “Uma Aventura no Algarve”, de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada (Caminho), onde a presença de malfeitores não impede a exaltação das maravilhas naturais que a serra e o mar algarvios guardam. SFC
Paris
Paris
Julien Green
Tinta-da-China
A viagem que Julien Green nos propõe pela Cidade Luz é uma deambulação quase poética, enformando pormenores numa leitura pessoal (“Descobri que Paris tinha forma de cérebro humano”). Mais do que nos restantes exemplos aqui alinhados, a cidade é verdadeira protagonista desta escrita, quase como se Green fosse apenas um canal de apaziguamento, “porque se tem fome e sede de França”. E não bastam as reproduções dos artistas, “eles consolam-nos com uma miragem”.
O mapa que aqui se traça é assumidamente sentimental, “uma Paris de visões”, que “migrava imperceptivelmente da carne para o espírito”.
A Igreja de São Julião, o Palais-Royal, o Claustro de Les Billettes ou um magífico monólogo atribuído ao Rio Sena são alicerces para um edifício que tem tanto de viagem como se sonho, afinal, duas facetas perfeitamente conciliáveis.
Paris é uma cidade especial, assemelha-se a uma mitologia própria fortemente apoiada no romantismo e na poesia, o que se adivinha ao ler outras obras, como o recentemente publicado “No Café da Juventude Perdida” (Patrick Modiano; Asa), o simbólico título “Paris é uma Festa” (Ernest Hemingway; Livros do Brasil) ou o já clássico “Os Passeios de Um Flâneur” (Edmund White; Asa). JM
Barcelona
A Sombra do Vento
Carlos Ruiz Zafón
Dom Quixote
Narrativa que rapidamente se transformou numa das mais importantes obras de culto do início deste século, “A Sombra do Vento” (inicialmente publicado em 2001, com edição portuguesa em 2004) é um romance com evidentes influências góticas que vive das suas personagens (bem arquitectadas, com alma e sentido), mas também, em grande parte, das deambulações pelas ruas de Barcelona. Quer nas alusões sucessivas a ruas e artérias, na sua esmagadora maioria, reais, quer na elaboração de cenários, esses sim, erguidos apenas na imaginação de Zafón.
O exemplo mais carismático desta segunda vertente é, sem dúvida, o Cemitério dos Livros Esquecidos, esse metafórico monumento à memória e à multiplicidade de caminhos onde a vida se bifurca, que acabou por se tornar num dos eixos fulcrais da tetralogia iniciada com esta obra (e da qual ainda falta conhecer dois volumes).
É nesse local que tudo começa para Daniel Sempere quando, pela mão do pai, entra em contacto com um livro de Julián Carax, intitulado “A Sombra do Vento”.
À procura do seu autor, vai conhecer o amor e o ódio, o peso das memórias, fantasmas de carne e osso e muitas outras formas de passado e presente se relacionarem, sempre com a desconfiança de que “no mundo dos livros não podemos confiar nem no índice”, como alerta, enigmaticamente, o livreiro Dom Gustavo Barcerló. JM
Japão
O Japão é um Lugar Estranho
Peter Carey
Tinta-da-China
Esqueçam as imagens de imperadores com ar rigoroso e postura zen. Esqueçam os ancestrais cuidados com a alma transmigratória que se manifesta em comportamentos, vestes e rituais vários. O Império do Sol Nascente é agora terra de filmes de anime, livros de manga e as guerras são outras, feitas à medida dos grandes estúdios de cinema.
Peter Carey, duas vezes vencedor do Booker Prize, recorre a uma viagem, ao território, na companhia do filho, para nos elucidar sobre o país que encontrou. Ambos combinaram evitar templos, cerimónias de chá e outras reminiscências. Carey procede a entrevistas com figuras como Yoshiyuki Tomino (o criador da série Mobile Suit Gundam), o realizador Hayao Miyzaki ou Yoshihara-san, construtor de espadas.
O que encontramos é um Japão actualizado, sem complexos de periferia nem atavismos coleccionados e alimentados pela própria fauna alienígena (quando Carey pergunta a Yoshihara-san se fabricar uma espada terá algo de espiritual, a resposta é esclarecedora: “andou a ler livros americanos?”.
Uma proposta diferente, em dias de algum interesse renovado sobre autores nipónicos, como tem demonstrado o sucesso de Haruki Murakami ou Banana Yoshimoto, a importância de Yukio Mishima ou a redescoberta de Junichiro Tanizaki. JM
Cabo Verde
Chiquinho
Baltasar Lopes
Nova Vega
Romance fundamental da literatura cabo-verdiana, "Chiquinho" concentra nas suas páginas as duas linhas de força que definiram a arquitectura do arquipélago no século XX: a luta pela sobrevivência e a esperança. E se as descrições dos árduos períodos de seca e fome podem afastar o leitor preocupado com a descoberta prévia de elementos de interesse nas ilhas que vai visitar, diga-se em abono de Chiquinho que talvez não haja melhor porta de entrada para a identidade cultural cabo-verdiana, ou para a compreensão dos espaços e das relações entre estes e os seus habitantes.
Profundamente relacionado com o movimento Claridade, impulsionador do chamado modernismo nacionalista, e com a revista homónima (onde os primeiros capítulos foram publicados, em 1936/7), o romance de Baltasar Lopes narra a vida de Chiquinho desde a infância, assumindo-o como figura central de uma viragem no destino do arquipélago. Terra e mar definirão a paisagem que o visitante encontrará em Cabo Verde, e definem igualmente o equilíbrio, por vezes conflituoso, em que assenta a narrativa: de um lado, a seca, a fome e a miséria, mas também as raízes, os antepassados e a tradição; do outro, o contacto com o mundo, inclusive em termos culturais, a esperança de uma vida melhor, a hipótese da emigração, mas igualmente o risco, o desconhecido e o medo. SFC
Lisboa
História de Lisboa (dois volumes)
A. H. de Oliveira Marques (texto) e Filipe Abranches (desenhos)
Assírio & Alvim
A cidade de Lisboa é um dos eternos cenários para romances, poemas e outras formas de evocação, tantas vezes fazendo da própria urbe, do seu pulsar peculiar, a verdadeira protagonista, escondida entre figuras de carne e sangue. ou desenhadas. Através desta narrativa em formato de banda desenhada, inicialmente lançada em 1998, entramos numa autêntica máquina do tempo que nos conduz ao longo da construção desta cidade, pelos séculos e as suas figuras icónicas, aliando a visão crítica e interventiva que nos concedem as imagens de Abranches (que opta aqui por diferentes abordagens estéticas e até algumas soluções onde se cruzam desenho e fotografia) à informação histórica constantemente introduzida por Oliveira Marques, historiador de nomeada. A luz, em tons de sépia, concede-nos a aura de documento, fazendo oscilar o facto e a interpretação, dando-lhe novas roupagens e uma energia de acontecimento vivo.Como escreveu João Paulo Cotrim, na edição nº 68 de A Phala, “cada pormenor diz da época: a barba de D. Dinis, como as vestes das damas, mas também os nomes das figuras e suas expressões, como as asneiras provocadoras lançadas entre árabes e cruzados, ou as cores com que é tintada cada época”. Já em 2009, Abranches viu a sua obra (Oliveira Marques, entretanto, faleceu em 2007) ser editada em Itália. JM»