segunda-feira, 29 de junho de 2009

Opinião: O problema dos ratos, por Possidónio Cachapa

O PROBLEMA DOS RATOS,
por Possidónio Cachapa (*)

Passam a vida a perguntar-me: «O que anda a ler?» E depois, ficam muito atentos à espera de que eu largue um nome em alemão ou em checo. Pelos menos, o de um francês que toda a gente tenha ouvido falar mas poucos lido.

O povo, e por «povo» entenda-se as pessoas que andam à volta da coisa impressa, está convencida de duas coisas, no que toca aos escritores: a) alimentam-se da sua inspiração, b) não vivem sem um livrinho a tiracolo.
Quanto mais o tempo passa, mais me reconforta fazer figura de estúpido, do gajo que nunca se lembra do que anda a ler ou do que já leu. Para as almas apressadas que quiserem saber, isso é sinal mais do que inequívoco de se estar na presença de um ignorante; uma decepção, portanto. O que, por comparação enciclopédica até pode ser verdade. Já não o será tanto se considerarmos o universo das coisa vivas.

Esclareça-se, então, que «escritor» é um gajo que escreve. Ou uma gaja, desde que se acrescente um «a». Não é obrigatoriamente um discípulo de São Tomás de Aquino, ou um encolhido que se furte à foda para ter orgasmos com as frases de Baudelaire. Pode ser e, em casos conhecidos, será, de certeza, mas não é condição. Da mesma forma que não têm de ser todos bêbados ou drogados, ou furados de piercings, ou isso tudo, num ai. E, já agora, alguns não precisam de ser feios como Judas para sublimar o amor. Assim, assim, chega-lhes.

Há um corpo e há um espírito que lhe dita coisas. Os dois podem alternar ou trabalhar em conjunto, se lhes dá para isso. Mas não há receitas nem obrigações. Ou não haveria, se o preconceito não grassasse precisamente entre os que afirmam combatê-lo.

Da minha experiência de contacto com escritores e escritoras, de nacionalidades várias, ficou-me a convicção de que a maioria tem interesse. Como pessoa, digo. Porque dizem coisas que fazem sentido enquanto tiram as espinhas ao pargo. Ou porque ajeitam a saia fazendo um comentário que confere a esse pequeno nada um sentido de que nos lembramos mais tarde. Os melhores são sempre curiosos como ratos. Mas não de biblioteca. Interessam-se pelas coisas do mundo, pelas suas contradições e mistérios. E sim, a maioria lê muito, porque se habituou desde sempre a ficar em silêncio diante de palavras escritas; porque sabem que no acto de ler está incluído um outro de reflexão que, depois de filtrado pelo seu próprio conhecimento, os acrescentará. É por isso que sabem passagens de cor e se recordam de personagens que conheceram décadas antes. Porque há uma razão concreta para isso.

Mas, e aqui a coisa refina, a sua fonte de alimento não é, nunca poderá ser, o trabalho dos outros. Isso é do domínio da crítica e dos que se alimentam da coisa germinada. Não há nisto um juízo de valor, apenas a constatação simples de haver uma diferença entre os que semeiam e os que recolhem.

Admito que me custa sempre recordar-me dos livros que alternam, viciosamente, na cabeceira da minha cama. Mas, se serve de atenuante, lembro-me muito bem do que se sente quando se chega ao fim de uma caminhada na Chapada Diamantina, ou quando se entrega as garrafas de oxigénio ao guia que ficou no barco, depois de ter percorrido o interior de um navio afundado. Receio que haja nisto pouco para alimentar o bibliófago exclusivista que, aparentemente, me competia ser. E, ainda assim, alguma coisa disto se transformará em texto. Escrito, como mandam as boas práticas…

(*) Possidónio Cachapa nasceu em 1965, em Évora. Licenciado em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa, é autor de romances, peças de teatro e livros de crónicas. Mantém o blogue Prazer Inculto.