Regresso a casa. Trânsito, claro, como não podia deixar de ser, ou não tivessem já batido as oito. E chuva, muita e certinha, batida a vento do norte, que isto do Inverno na Invicta é marca registada e não ficava bem se fosse de outra forma. Isto, pelo menos, o aquecimento global ainda não alterou.
Para trás, mais um dia daqueles. Muita coisa feita, muito ainda por fazer e a moer o juízo. Mas o dia só tem 24 horas. Como diria o outro, é a vida.
Toca o apêndice. Espreito o visor – trabalho, aposto; e aposto muito bem já com o auricular, que isso de multas é para quem as pode pagar. E este pára-arranca começa a ser desesperante.
Enquanto falo, percebo uma segunda chamada [já t’atendo], que entretanto desliga. Terminada a primeira conversa, vamos lá ver quem me ligava a esta hora.
– Boa noite! Recebi uma chamada deste número há momentos…
– Sim, sim! Viva, boa noite! Desculpe incomodá-lo tão tarde, mas precisava de falar consigo e o seu contacto foi-me dado por uma jornalista.
[Nota mental: por onde andará o meu número de telemóvel?]
O tom pausado não disfarçava a ansiedade na voz.
– Sabe, queria falar consigo porque li uma entrevista com aquela vossa escritora muito famosa e fiquei com vontade de falar com ela.
Bom, parece-me pacífico. As novas tecnologias existem para isso mesmo e, com elas, não há fronteiras. É sempre bonita esta frase-feita. Ah!, o conforto do disparate quando estamos sozinhos no carro é irresistível.
– Quero que ela escreva um livro para mim com a história da minha vida.
Ora aí está uma boa altura para puxar do cigarro, que a conversa promete.
– Pois – digo eu, enquanto baixo o vidro para deixar entrar o frio tripeiro que há-de limpar o fumo – essa é uma proposta curiosa…
Curiosa o tanas!, só me faltava esta para acabar o dia. Ou começar a noite.
– Ela é a escritora ideal para a história que tenho para lhe contar. Li o livro dela e não tenho dúvidas: é ela que quero para escrever a minha história.
O entusiasmo da senhora era directamente proporcional à minha incredulidade. Trânsito, chuva, frio, noite cerrada, cansaço… Entrei na Quinta Dimensão e não notei?
– Não sei como lhe dizer isto… Na verdade, essa autora não escreve livros por encomenda. É claro que se inspira em episódios das vidas de pessoas com quem se cruza, mas daí a escrever para outra pessoa vai uma grande distância.
– Mas eu tenho a certeza que ela vai querer assim que eu lhe contar a minha história. Consegue-me marcar um encontro com ela?
– Receio que essa seja uma possibilidade muito remota…
– Porquê?
– Ela não vive cá.
– Em Lisboa?
– Em Portugal…
Silêncio. Curto, mas desfrutado com imenso prazer.
– Então, talvez eu possa encontrar-me consigo. Conto-lhe a história e arranja-me um escritor para ela.
É definitivo: estou na Quinta Dimensão. Ou então é para os apanhados.
– De certeza que conhece muitos escritores e vai ser fácil arranjar um para escrever a minha história. Mas tem de ser bom escritor. E de entender francês e alemão.
– …
– Quando nos podemos encontrar? Amanhã à tarde vou ao Chiado…
Salvação!!!
– Bom, minha senhora, isso também é algo difícil de acontecer…
– Não me diga que também não está em Portugal?
– Estou, estou, mas eu vivo no Porto e, como deve compreender, não é fácil agendar uma deslocação a Lisboa tão em cima da hora… Deixe-me propor-lhe o seguinte: porque não me envia um e-mail com a sua história, mesmo que seja em traços gerais, e vê-se o que se pode fazer?
Eu já estava por tudo.
– Isso não! Nem pensar! Só conto de viva voz.
A senhora, felizmente, não.
- É uma história com episódios muito pessoais e só a conto directamente a quem tratar de a publicar em livro.
O trânsito parecia, finalmente, mais fluído.
– Então não sei como posso ajudá-la.
A chuva abrandara.
– Pois, de facto. E a minha história vale mesmo a pena, acredite.
– Acredito, claro! – Mas o frio não esmoreceu. Há que fechar a janela, até porque o cigarro acabou uns «tirem-me deste filme» atrás.
– Deixe-me pensar como podemos ultrapassar esta dificuldade. Eu telefono-lhe. Que diabo, queria mesmo aquela escritora!
– Pois…
Agora na VCI, faixa esquerda livre, BB King e a sua Lucille em grande nível, a olhar pelo retrovisor à espera de ver o genérico da Quinta Dimensão e a interrogar-me que história teria ela para contar…
Daria um bom livro?
(*) Formado pela Escola Superior de Jornalismo do Porto, Paulo Gonçalves está na Porto Editora desde 1996, sendo Responsável pelo Gabinete de Comunicação e Imagem há 10 anos.
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