terça-feira, 26 de maio de 2009

«Em alta rotação», por António Guerreiro

Publicamos aqui alguns excertos do artigo «Em alta rotação», de António Guerreiro, publicado na revista Actual #1905, do jornal Expresso, de dia 1 de Maio de 2009; págs. 12-15, na secção «Mercado dos Livros».

«Em 1996, foi decretado o preço fixo do livro. (…) inspirada no modelo francês, visava defender a diversidade das espécies bibliográficas e evitar a 'bestsellerização' editorial. Doze anos depois, verifica-se que a lei não teve efeito nenhum: as grandes cadeias de comercialização do livro triunfaram em toda a linha e, com as devidas excepções (e algumas tentativas de excepção que não conseguiram sobreviver) impuseram a sua lógica ao pouco que resta das livrarias tradicionais. (…) tem-se acentuado a tendência para um mercado que incide quase em exclusivo nas novidades e para o desaparecimento dos fundos e dos livros de referência; neste ambiente, os livros de circulação mais lenta e com vocação minoritária (isto é, a literatura que não cumpre a função de entretenimento e as ciências sociais e humanas, para não falarmos das ciências 'duras') ocupam cada vez menos espaço nas livrarias e estão ameaçados.

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O pano de fundo é, pois, o de uma sobreprodução de títulos novos, o que não significa variedade e satisfação de todo o tipo de leitores, mas, pelo contrário, um estreitamento enorme de diversidade editorial. Jorge Azevedo, da distribuidora Sodilivros, faz o retrato da situação: “Mesmo com a crise, não se nota uma diminuição do fluxo editorial. O excesso de produção e o facto de não haver espaço nas livrarias para os livros que se publicam são uma bomba a que se juntou agora a dificuldade financeira. Não há um abrandamento no movimento de edição por causa daquilo a que chamo 'lei da bicicleta': quem deixa de pedalar cai.

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As grandes cadeias de livrarias só compram o mainstream, não sabem fazer escolhas, e quando se trata de devolver fazem-no sem critério. Já me aconteceu devolverem-me um exemplar da 'Odisseia'... (…) A Fnac ainda tem uns arremedos de livros de referência, a Bertrand já nem isso.

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Ernesto Damião, director da Unidade de Negócios das Livrarias Bertrand, tem, evidentemente, um discurso diferente: “A maior parte dos editores não sabe fazer contas. As nossas lojas têm, em média, 150 metros quadrados e situam-se em centros comerciais, que são espaços muito caros. Para rentabilizá-los e para fazer face a todos os aspectos logísticos, temos de fazer uma selecção, não podemos comprar tudo, não podemos ocupar o espaço com livros que só vendem um excemplar num ano.

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André Jorge, da editora Livros Cotovia, (…) refere-se a um desequilíbrio das forças entre os editores (sobretudo se são pequenos) e as cadeias de livrarias, que existem em situação de monopólio: “As livrarias ficam com 40%, pelo menos, do preço total do livro e têm um direito ilimitado de devolução. E quando um livro ultrapassa um certo número de vendas ficam com cerca de 7%. A Fnac ainda fica com mais 1 a 1,5% pela 'centralização' (isto é, pelo facto de a distribuição dos livros nas lojas da cadeia estar centralizada). E assegurar o destaque de um livro implica gastar quantias que só estão ao alcance de quem entrou na lógica da industrialização do livro.

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Para o actual estado de coisas contribuíram editoras e livreiros, alimentando-se reciprocamente nos seus processos, fazendo com que estes ganhassem uma dimensão coerciva que é difícil deter. O emblema maior deste círculo vicioso é a questão de sobreprodução de livros: as editoras produzem livros adaptando-se aos critérios de alta rotatividade das livrarias, e estas governam-se pela lógica que potencia as regras nefastas da edição.

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André Jorge também exprimiu o mesmo desejo de interrupção, dizendo que os pequenos editores até viram a entrada em cena da Leya com a esperança de que este grupo editorial, com a sua força, impusesse novas regras na relação com as livrarias. O director-coordenador comercial e de marketing da Leya, Pedro Pereira da Silva, colocado perante esta questão, respondeu de maneira prudente: “A relação entre quem produz e quem vende é uma relação comercial, que a Leya pretende que seja benéfica para ambas as partes.” E acrescenta: “Quanto às regras do mercado, acho que este é um sector em transformação e que o mercado se encarregará de ir definindo novas regras nos tempos próximos.” (...) ao contrário do que aconteceu noutros países europeus, não apareceram em Portugal livrarias especializadas, como seria de esperar a partir do momento em que se entrou na fase de industrialização do livro. Uma excepção é a livraria Poesia Incompleta, especializada em poesia, na zona do Príncipe Real.

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Dir-se-ia que as 'editoras culturais' tinham todo o interesse em trabalhar em grande cumplicidade com estas livrarias. Mas a experiência obrigou-as a muita prudência. André Jorge, da Cotovia, explica: “Tenho uma grande simpatia por essas livrarias bem intencionadas, mas o que tem acontecido com a maior parte é que acabam por se ver em dificuldades e não pagam.

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Não se pense, porém, que liquidar as contas seja coisa fácil quando se trata das grandes cadeias. Neste caso, a arma utilizada para diferir os pagamentos chama-se devolução. Manuel Rosa explica que é prática comum das grandes livrarias fazerem devoluções indiscriminadas nas vésperas do pagamento para ficarem com crédito e decidirem a quantia que vão pagar. Passado o dia do pagamento, voltam a pedir muitos dos livros que devolveram. E acrescenta: “No ano passado, durante os meses de Junho, Julho e Agosto, a Fnac não nos pagou. Faziam sempre devoluções no valor de que deviam pagar.”

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[Segundo] Jorge Azevedo, (…) a média de devolução é de 30 a 40% dos livros vendidos. O direito de devolução não é apenas ilimitado, pode mesmo implicar custos para o destinatário: a Bertrand (…) coloca por conta dos editores as despesas da devolução.

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Sobreprodução de títulos novos, proliferação de feiras e saldos, distribuição de colecções de livros pelos jornais a preços irrisórios... tudo isto pode parecer vantajoso mas acaba por ter efeitos altamente perniciosos. Porque se extinguem os canais que permitem a diversidade e se faz com que os livros que não entram nessa competição tenham um preço proibitivo. “Há editores que fazem livros para os jornais”, diz André Jorge.

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“É curioso que os jornais, tão voltados para os novos media, recorram tanto ao livro como fonte de rendimento e meio de produção.” Neste contexto, a Feira do Livro surge cada vez mais como uma aberração e como algo que ajuda à instituição permanente de um regime de excepção no que diz respeito à comercialização do livro.»
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