quarta-feira, 20 de maio de 2009

Ler não é um acto solitário - Os Meus Livros

«São aliciantes, exigem dedicação e tornam-se um vício. Partilhar leituras em grupo desafia os leitores, lança-os em descobertas insondáveis, e tece amizades. São as Comunidade de Leitores. Quer entrar?

O décimo direito do leitor é não falar do que leu. Quem o diz é Daniel Pennac, naquele que é comummente aceite como uma bíblia da Promoção da Leitura, “Como um Romance” (Asa). Não foi por isso à toa que Inês Pedrosa escolheu este livro para a primeira Comunidade de Leitores levada a cabo numa Biblioteca Municipal (em Portalegre), nos idos de 2001.

O direito de não falar pressupõe que a partilha deve ser desejada e não imposta. Com base neste princípio, as Comunidades de Leitores convidam para um conjunto de conversas informais pessoas que reúnam à partida duas condições: gostar de ler e gostar de falar do que lêem.

Em cada Comunidade há um líder que modera o diálogo, avançando informações, sugerindo sentidos, provocando o debate. As escolhas dos livros fazem-se previamente pelo líder ou numa primeira sessão, quando o grupo se apresenta. Os livros são, frequentemente, romances, novelas ou contos, embora se encontrem livros de poesia ou textos dramáticos. Os autores podem ser portugueses ou estrangeiros, contemporâneos ou não. As abordagens têm vindo a tornar-se cada vez mais diversificadas, tendo inicialmente oscilado entre a obra de um autor, uma época, ou um conceito (a amizade, o amor, a morte…). Actualmente há comunidades um pouco por todo o país, em Bibliotecas Municipais, Livrarias, Fundações e Centros Culturais, com temas que vão desde os Clássicos ao Policial ou à Banda Desenhada. Os modelos são algo versáteis, assim como o número de sessões, embora o mais comum seja entre seis e sete encontros. Os moderadores são os mais diversos, desde escritores, jornalistas culturais, bibliotecários, professores… em suma, qualquer um pode orientar uma Comunidade de Leitores, desde que seja um leitor atento e interessado, não apenas pelo universo da literatura, mas também pelos leitores que vai encontrar. Para participar, basta querer.

Pioneiros em Portugal
As Comunidades de Leitores nasceram no séc. XIX no mundo anglo-saxónico, mais especificamente em Massachussets, reunindo grupos de mulheres leitoras das classes altas. O modelo cedo proliferou e na década de 1870 o movimento dos grupos de leitura (reading groups) era já comum, por iniciativa dos próprios leitores. Actualmente as Comunidades de Leitores têm larga expressão em diversos países, nomeadamente na vizinha Espanha ou no Brasil.

Em Portugal, o seu aparecimento foi pensado pelo então Instituto do Livro e das Bibliotecas – IPLB (actual Direcção Geral do Livro e das Bibliotecas – DGLB), no âmbito do Programa de Itinerâncias de Promoção da Leitura.

Foi em 2001 que Maria Conceição Caleiro liderou o projecto de criação de Comunidades de Leitores, nomenclatura atribuída pela própria, a partir da designação francesa, ‘Communauté de Lecture’. A sua intenção era estabelecer laços sociais e afectivos entre pessoas que partilhassem ideias acerca do que liam, de forma intimista e informal. Assim, esperava-se alimentar uma cultura do livro, e estimular leitores descontinuados a nunca abandonar a leitura, tornando-os leitores sistemáticos.

Era, então, preciso atrair as pessoas para a iniciativa. O IPLB decidiu escolher para líderes das comunidades, figuras que, para além do seu conhecimento literário, fossem boas comunicadoras e suficientemente mediáticas para chamarem a atenção do público, sem se tornarem académicas. As primeiras foram Maria João Seixas e Inês Pedrosa, ambas jornalistas, ambas reconhecidas pela sua presença mais ou menos regular em programas de televisão.

Seguiram-se-lhes Helena Vasconcelos, Paula Moura Pinheiro, Manuel António Pina, Mário Cláudio, Francisco José Viegas ou a própria Conceição Caleiro. A proximidade entre estas figuras e os meios de comunicação social, especialmente dos veículos culturais, contribuiu igualmente para a sua divulgação.

«Comunidades de Leitores são comunidades de, e com, leitores. Não são palestras, não são conferências, não são momentos reverenciais em relação a autores ou a textos.», Helena Vasconcelos

Na primeira pessoa
Actualmente, Helena Vasconcelos é uma das líderes mais activas e antigas na liderança das Comunidades de Leitores. Orienta, desde 2006, a Comunidade de Leitores da Culturgest, continuando a colaborar com a DGLB. É uma das actividades que mais preza, descrevendo-a como «uma actividade do pensamento, lúdica e convivial».

Acerca dos participantes, acrescenta que «são pessoas extraordinárias que tiram sempre esse tempo das suas vidas bem preenchidas, para estarmos juntos a discutir livros. As sessões que oriento são acaloradas, vivas, divertidas, muito compensadoras. Ao longo dos anos temo-nos tornado amigos e amigas».

Quanto às condições necessárias para o sucesso de uma Comunidade, considera que a horizontalidade das relações é essencial para que todos se sintam envolvidos e contribuam: «as Comunidades têm que ser participativas.

Não podem existir distâncias. Por isso nunca convido autores nem professores para as minhas Comunidades.

Sou eu e eles e elas. Afasto quaisquer “bengalas”, isto é, intermediários, para que as pessoas digam exactamente o que pensam, o que sentem. Dissecamos os textos, eu coloco-lhes desafios, contradigo-os e ninguém vai às minhas sessões “só para ouvir”. Existe uma participação activa directa e viva, sem preconceitos e não passiva, de ouvinte. Ninguém é preguiçoso e todos fazem esforços.

Por vezes prego-lhes com cada “estucha”...! E ninguém se coíbe de dar a sua opinião. Comunidades de Leitores são comunidades de, e com, leitores. Não são palestras, não são conferências, não são momentos reverenciais em relação a autores ou a textos. São uma partilha de opiniões e de ideias - para quem realmente pensa».

O universo das Bibliotecas
As Bibliotecas Municipais foram, desde sempre, parceiras privilegiadas da DGLB. O objectivo da instituição tem sido dotar estes equipamentos municipais de condições para a promoção da leitura numa relação de proximidade e conhecimento relativamente à população de cada concelho.

Por isso, a realização de Comunidades lideradas por jornalistas e escritores pretendia e pretende dar ferramentas às equipas das Bibliotecas Municipais para autonomizarem o processo a posteriori, recorrendo a participantes que manifestem interesse e condições para liderarem outro ou o mesmo grupo numa segunda Comunidade.

Em Aljustrel, a Biblioteca Municipal reuniu por dois anos consecutivos alguns leitores em torno dos livros. Não foi convidado qualquer líder, ficando as expensas das sessões a cargo do grupo, apesar da ajuda previdente da bibliotecária na moderação. Francisca Branco explica que «a aposta na comunidade ficou a dever-se, sobretudo, à possibilidade de, por esta via, fazer uma divulgação efectiva dos livros e dos seus autores. Por outro lado a partilha da leitura do livro escolhido resulta sempre numa troca de ideias interessante e enriquecedora, e que por isso mesmo leva a que cada membro do grupo veja a obra por outra ou outras perspectivas, diferentes da sua, e o recomende a amigos e conhecidos. Torna-se um espaço de discussão de ideias que ultrapassam o livro e que de alguma forma gera laços entre os diversos membros do grupo».

Todavia, um dos grandes entraves à realização das Comunidades de Leitores nas Bibliotecas Municipais prende-se com a aquisição dos livros. Muitas vezes, não dispõem de verbas para que se comprem dez ou doze exemplares de cinco ou seis livros diferentes, para serem requisitados pelos participantes. Em Loulé, por exemplo, os livros usados no Grupo de Leitura de Loulé, que já vai na 3ª edição, transitam depois para o de Quarteira (que se estreou em Janeiro), optimizando recursos.

A organização do Clube resulta de uma parceria entre as moderadoras convidadas (Adriana Nogueira, em Loulé, e Conceição Bernardes, em Quarteira) e a coordenadora do projecto (Rita Moreira), que integra a equipa da biblioteca e trata de toda a logística. Promovem-se igualmente actividades complementares para o grupo, como idas ao teatro, cinema, visitas a exposições, encontros com escritores, professores ou outras personalidades e ainda encontros com membros de outras Comunidades.

Quer em Aljustrel, quer em Loulé, os livros são escolhidos por todo o grupo, sob a orientação das líderes. Para além destes dois exemplos, muitos outros acontecem durante todo o ano pelo país, basta ao leitor informar-se na sua Biblioteca Municipal.

Um dos grandes entraves à realização das Comunidades de Leitores nas Bibliotecas Municipais prende-se com a aquisição dos livros.

Muitas vezes, não dispõem de verbas para que se comprem dez ou doze exemplares

Várias dinâmicas
Na Biblioteca Municipal de Torres Vedras, por exemplo, decorre até 18 de Junho, uma Comunidade intitulada 5ªs com Livros. Aqui a dinâmica é um pouco diferente. Conta com duas moderadoras, uma exterior (Filipa Ribeiro), outra animadora da Biblioteca (Isabel Raminhos), que intercalam a liderança, ficando a seu cargo a escolha dos livros que propõem. As sessões contam com a presença de um convidado, alguém cuja experiência se relaciona com o livro em debate. Um outro exemplo, bem diferente, é o do Clube de Leitura que se reúne, desde o início de Março, na Biblioteca Pública do Faial.

É o próprio Bibliotecário (Luís São Bento) quem assegura a organização dos encontros, em que cada leitor, ele inclusive, escolhe um livro sobre o qual gostaria de falar, partilhando o seu entusiasmo, perplexidade, emoção…

Por vezes, as designações Comunidade de Leitores e Clube de Leitura confundem as pessoas, que imaginam estar perante dois modelos de funcionamento distinto. Mas assim não acontece. Ambos se reportam exactamente ao mesmo fenómeno, embora as suas origens semânticas venham, do francês a primeira, e a segunda do inglês. As particularidades de cada comunidade/ clube dependem depois das características do grupo e da perspectiva de quem coordena o projecto.

As livrarias também têm vindo a apostar em Comunidades de Leitores.

A Almedina organiza-as desde 2006, em Lisboa, Porto e Coimbra. A jornalista Filipa Melo foi quem lançou o projecto, orientando as comunidades em Lisboa.

Os grupos reúnem um dia na primeira e na última semana de cada mês: na primeira apresenta-se o livro e as pistas de leitura, na segunda participa um convidado (pode ser o autor do livro, ou alguém da área em debate) para o discutir. Para completar a leitura principal, são sugeridas outras obras.

Estão igualmente a decorrer Clubes de Leitura em várias lojas da Livraria Bulhosa. Basta aceder à agenda, na internet, para escolher. Em Braga, a Livraria 100ª Página organiza na Velha-a-Branca uma Comunidade que dura desde 2006. Aqui, não são necessárias inscrições, as reuniões são mensais e contam sempre com convidados. Os livros da Comunidade têm desconto na livraria, para os participantes.

Mas as Comunidades de Leitores não são um exclusivo de Bibliotecas e Livrarias. Também o Theatro Circo, na mesma cidade, contou com valter hugo mãe na dinamização de uma comunidade sobre a nova literatura portuguesa, que terminou em Março. Para além da Culturgest, também a Fundação Serralves vem acolhendo grupos em torno de temas como Aventura e Viagem, A tragédia Grega ou O Sentido do Trágico, na maioria das vezes sob a liderança de Maria João Seixas. Semanalmente, durante duas horas, mediante inscrição e pagamento. O Gabinete de Estudos Olissiponenses iniciou no passado dia 25 de Março a sua Comunidade. O grupo reúne no Palácio do Beau Séjour, em Benfica, e contará com a presença do autor da obra lida, sempre que possível.

Não faltam por isso opções a quem queira arriscar, basta escolher…»

Texto publicado na revista Os Meus Livros n.º 75 (Maio de 2009).