Já está nas livrarias o mais recente trabalho de José Afonso Furtado: A Edição de Livros e a Gestão Estratégica. É um livro obrigatório para todos os que acompanham e trabalham no sector editorial.
Trata-se de uma obra de grande fôlego, exaustiva, que concilia a análise teórica com uma abordagem prática do tema, aspecto de grande importância para quem estuda ou quer reflectir sobre o sector da edição.
Há preocupação notória do autor em proporcionar uma obra actual e actualizada, isto é: actual, porque o sector editorial tem vivido transformações que o colocam como tema de interesse; e actualizada, porque, mesmo revisitando os últimos 50 anos deste sector, encontram-se facilmente informações e elementos com escassos meses.
Com um manancial de informação valiosíssima, onde se incluem modelos e instrumentos de análise estratégica, este livro não se dedica «apenas» a analisar os problemas que vivemos, antes desafia o leitor a perspectivar o futuro. Também por isso, José Afonso Furtado merece ser saudado por contribuir para o urgente debate sobre a actual situação do sector do livro em Portugal.
Nesse contexto, entendo que nos devemos debruçar na revolução mais ou menos silenciosa que o retalho tem vivido nas últimas duas décadas, para depois olharmos com atenção para o autêntico tornado que, nos últimos dois anos, assola o sector da edição.
Tudo começou em meados dos anos 80 do século passado, quando os livros começaram a ser comercializados nos hipermercados, fruto do aparecimento destas grandes superfícies comerciais. Na década seguinte, foram sendo construídos diversos centros comerciais, tendo sido então que apareceram as primeiras lojas FNAC ou o El Corte Inglês e que a rede de livrarias Bertrand cresceu aceleradamente.
Um pouco mais tarde, foram criadas as livrarias Almedina e as Bulhosa que, quando integradas no Grupo Civilização, assumiram a forma de rede de livrarias, com a compra e criação de outras unidades.
Não há qualquer dúvida de que a multiplicação dos pontos de venda de livros, muitos deles mais próximos dos consumidores quando estão disponíveis para a aquisição, impulsionou a venda de livros e aquilo a que alguém (não me recordo quem) se referiu como a «democratização do livro». Vendiam-se mais livros e em mais locais.
Tudo isto só foi possível graças à chamada Lei do Preço Fixo, publicada em 1996 e revista em 2000, de que José Afonso Furtado foi um dos pais, quando esteve no Ministério da Cultura. Sem esta Lei, porventura já um pouco antiquada mas ainda a desempenhar um papel vital no sector, não teríamos livros nas FNAC (ou não teríamos mesmo lojas FNAC) e a maioria das livrarias dos centros comercias (Bertrand e outras) sentiriam enormes dificuldades e, provavelmente, poucas sobreviveriam.
No entanto, a Lei do Preço Fixo não conseguiu proteger devidamente aqueles que motivaram a sua discussão e publicação – os livreiros independentes ou, como na altura eram conhecidos, simplesmente as livrarias.
As mudanças de paradigma a nível comercial, com enormes fluxos de consumidores atraídos para os hipermercados e centros comerciais, «secaram» as ruas de clientes e, as livrarias, como a maioria dos outros estabelecimentos comerciais tradicionais, perderam grande parte dos seus clientes.
Os horários de abertura, o estacionamento, a comodidade quando o tempo é de chuva, a atractividade dos centros, etc., constituem o conjunto de factores que, em maior ou menor grau, foi asfixiando a maioria das livrarias.
Sobreviveram as mais eficazes e as que encontraram ou mantiveram um nicho de clientes fiéis, mas, mesmo estas, com grandes dificuldades.
As referidas alterações no retalho do livro também tiveram grande impacto no sector da edição, nomeadamente nos prazos de pagamento, nas margens de desconto de comercialização e até nas estratégias editoriais e de marketing. A indústria editorial teve de se adaptar a todas estas mudanças, mas não foi fácil.
Com as crescentes dificuldades que daí surgiram, muitos editores ficaram vulneráveis e predispostos à alienação das suas empresas, criando a oportunidade de concentração no sector que o Eng.º Miguel Paes do Amaral soube aproveitar.
Em abono da verdade, a concentração no sector editorial começou em 2002, quando a Porto Editora adquiriu duas editoras: a Areal Editores e a Lisboa Editora. Na altura, só os mais atentos e os outros editores escolares prestaram atenção a esse movimento, mas a Porto Editora dava passos firmes para se assumir como o maior grupo editorial português.
Em 2006, antecedendo o tornado que referi atrás, a Porto Editora diversificou a sua actividade para a ficção, ao mesmo tempo que consolidava a sua presença no exterior, nomeadamente em África.
E, em 2007, dá-se a convulsão total.
O Grupo Bertelsmann, através da sua divisão Direct Group (detentora do Círculo de Leitores e da Temas e Debates) compra a Bertrand. Na realidade, a compra deu-se em 2006, mas o real impacto verificou-se em 2007.
Paes do Amaral compra a Texto Editores, a seguir a Caminho, a Gailivro, a NovaGaia, a ASA e, já no final de 2007, a D. Quixote, não conseguindo adquirir a Editorial Presença e a Gradiva.
Entretanto, um outro grupo de investidores financeiros, o fundo Explorer, tinha adquirido a Oficina do Livro, a Casa das Letras e a Sebenta, às quais, em 2007, se juntou a Teorema.
Em meados de 2008, o grupo de Paes do Amaral, já organizado como Grupo Leya, compra estas últimas editoras e fica com cerca de 34% da edição não escolar em Portugal e 31% da edição escolar, com uma facturação global ainda desconhecida.
Paralelamente, também no ano passado, rebenta a crise do sub-prime, seguida dos graves problemas no sistema financeiro mundial, com a falência ou nacionalização de alguns bancos em vários países. Daqui resulta que a maioria dos pequenos e médios editores que se mantinham independentes ficam sem acesso a crédito, o que lhes criou grandes dificuldades – as excepções serão, talvez, a Presença, a Gradiva e, eventualmente, qualquer outra de que me esteja a esquecer.
Ou seja: ainda que se verifique um ligeiro abrandamento na venda de livros (mas nada que se compare a outros sectores), o real problema do sector é financeiro.
A crónica debilidade do sector editorial resultante da anterior concentração do retalho, e que tanto facilitou a concentração da edição, operada em meses, está a contribuir para o asfixiamento das editoras mais vulneráveis em termos financeiros.
Tudo isto coincide num período em que se adivinham muitas mudanças para o sector.
Depois de quase 15 anos a falar de e-books, o mundo da edição não tem dúvidas de que a revolução digital está à porta do sector do livro.
Qual o impacto? Será totalmente disruptiva? E, nesse caso, daqui a quanto tempo?
Quais os modelos de negócio?
Qual o papel do retalho?
Qual o papel do direito de autor num mundo crescentemente digital?
As respostas a estas e a outras perguntas são diferentes conforme o interlocutor e, nalguns casos, são perturbadoras.
Num aspecto todos concordam: o digital está a chegar e vai mudar muita coisa.
Pessoalmente, acho que haverá um processo de sobreposição mais ou menos longo, em que o livro físico e o livro digital (ou os conteúdos digitais, melhor dizendo) conviverão num mercado que terá de se adaptar. Prevejo tempos muito difíceis, mas também muito estimulantes.
Mas há um tópico que é de extrema importância para o futuro próximo: a defesa da propriedade intelectual.
Esta é uma questão decisiva para o futuro de todos os que trabalham no sector do livro.
Todos, sem excepção, devem preocupar-se sobre esta matéria e procurar dar o seu contributo para evitar que atravessemos ainda maiores dificuldades. Devemos, por exemplo, olhar para o que se passou na indústria musical e aprender com os erros que foram cometidos nesse contexto.
É por tudo isto que o livro de José Afonso Furtado deve ser lido com atenção. A análise e a compreensão dos fenómenos que marcaram os últimos tempos são fundamentais para vencermos os desafios que o futuro nos coloca.
(*) Texto lido na apresentação da obra "A Edição de Livros e a Gestão Estratégica", de José Afonso Furtado (ver aqui), e que se encontra publicado na edição n.º 1005, do JL, nas bancas desde ontem.
(**) Vasco Teixeira, licenciado em Engenharia Civil, é administrador do Grupo Porto Editora. É membro da Comissão do Livro Escolar da APEL.