O SONHO DOS ESCRITORES JOVENS
por António Manuel Venda (*)
Há muitos anos, tinha eu acabado de publicar o primeiro livro, convidaram-me para escrever um conto para uma revista. Já não me lembro por quê, disse que sim e lá escrevi o conto, e até acabei por ter de fazer uma sessão de fotografias de que conseguiram aproveitar uma que publicaram a preto e branco. A edição – disseram-me – era feita apenas com textos de jovens escritores, e eu com vinte e muitos anos, quase trinta, eu era um deles. Não me considerava propriamente um jovem, mas na altura já ia percebendo que aos vinte e muitos no mundo lento das letras ainda se é realmente bastante jovem. Tinha acabado de entrar para uma empresa de uma coisa que agora já não existe (o mercado financeiro) e lembro-me de que nessa altura o presidente ao olhar para as folhas de papel do meu currículo o único reparo que fez, além do facto de não ser do Benfica, como ele, foi a idade («quando me falaram de si, pensei que era mais novo»). Mas fiquei, apesar de não ser jovem e apesar do saudável defeito futebolístico.
Bom, publiquei o primeiro livro e recebi o convite para escrever o conto. Eu, o jovem escritor, embora não tão jovem como isso lá na outra coisa que agora já não existe. Quando a revista saiu, tive mais uma prova de nas letras uma pessoa ser realmente jovem mesmo a chegar aos trinta. Além do Pedro Paixão, com meia dúzia de anos a mais do que eu e não sei quantos livros também a mais, aparecia na revista um jovem escritor de quarenta e sete anos de que não recordo o nome. Acho que devo a ele, ou antes, à sua presença na revista, o facto de ainda hoje, quando alguém me referencia como um jovem escritor, eu quase acreditar. Porque ainda estou a alguns anos dos quarenta e sete.
De qualquer forma, na altura do meu primeiro livro nem toda a gente que ajudou na sua divulgação se deixou ir na onda do jovem. Num jornal apareceu uma crítica a dizer «jovem autor estreia-se com um livro tal e tal», um jornal dos de grande circulação, e então começou uma coisa que poderia ser um efeito dominó (mas que logo parou). Ligaram-me de uma televisão para uma entrevista, por causa dessa crítica. Podia ser do «Acontece» ou algo assim, mas não, era de um programa daqueles da manhã. Nem mais nem menos do que um apresentado pelo Manuel Luís Goucha. Queriam entrevistar o jovem, e eu, um bocado receoso mas pressionado pelo editor, lá fui para ser entrevistado. Creio que não disse grandes asneiras, porque como era Inverno e gravavam o programa no Porto constipei-me mal lá cheguei e fiquei quase sem voz; ou seja, disse apenas coisas tipo sim, não ou talvez. Mas antes da entrevista, no corredor que dava acesso à sala de gravações, o Goucha apareceu-me com uma fotocópia da tal crítica que falava do jovem que se estreava com um livro tal e tal, olhou para mim, olhou para a fotocópia, voltou a olhar para mim, não me lembro já se voltou a olhar para a fotocópia, e acabou por dizer:
– Jovem escritor?! Mas você afinal não é nada jovem!
Ele lá sabia. Naqueles programas – como dizer? – pouco literários, pelos vistos era como naquela coisa que agora já não existe. Jovem… Talvez até aos vinte e cinco, e mesmo isso não sei.
Entre os das letras é que me mantive sempre jovem. Inclusive, ainda há uns tempos o meu editor me chamou jovem escritor. Eu tenho um romance em que há um jovem escritor que se confunde comigo. Na volta foi por causa disso e não porque me ache um jovem ao fim de tantos anos que ele se saiu com aquilo. Ou então não foi. Certezas, só perguntando-lhe. Como também se podia perguntar àqueles críticos que metem sempre o jovem nos textos sobre os meus livros, agora como há dez ou doze anos. Fazem-no nem que seja no último o parágrafo, quando já vou perdendo a esperança de encontrar o jovem.Com tudo isto, não admira que um dia destes eu tenha sonhado que no mundo das letras se esconde a fórmula da eterna juventude. O Saramago, o Lobo Antunes, a Agustina Bessa Luís, todos eles eram jovens nesse sonho. Tão jovens como o Agualusa, o Gonçalo M. Tavares, o Paul Auster ou a Margarida. E também tão jovens como o Vargas Llosa, o Stephen King, o Júlio Magalhães, a Monica Ali ou a Rosa Lobato Faria. Centenas de escritores, milhares, nem sei até se mais do que isso. E não havia velhos, apenas jovens. Alguns minutos depois de acordar, aí é que percebi que se tratava de um sonho. Fiquei preocupado, porque eu nunca aparecia. Depois passou-me.
(*) Nasceu em Monchique, em 1968. Publicou nove livros de ficção, sendo o último dos quais o romance Uma Noite com o Fogo. Destes, alguns receberam prémios literários de instituições como o Instituto Abel Salazar, o Centro Nacional de Cultura, a Câmara Municipal de Almada, a Secretaria de Estado da Cultura e a Sociedade Portuguesa de Autores. Mantém inéditos dois livros de histórias (O Bilhete do Senhor Scolari e Políticos, esses Animais) e uma primeira aventura de um pequeno super-herói chamado Zeca Zângão (Mandriões na Roda Gigante). Trabalha actualmente em diversos projectos de ficção. Vive no Alentejo e escreve no blogue Floresta do Sul.
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