NÃO LEIA O TÍTULO, LEIA O TEXTO,
por Luís Filipe Cristóvão (*)
Já alguma vez se sentou a pensar nas circunstâncias em que despertou para a leitura? Entre bibliotecas, avós, professores, irmãos mais velhos, alguns de nós vão lembrar-se de um livreiro em especial que, em determinado período das nossas vidas, nos conquistou com a sua sabedoria, com a facilidade com que encontrava o livro que nós nem sabíamos existir, com a forma como dominava todas as linhas com que se cosia o encantado mundo dos livros. Eu tive um livreiro assim: chamava-se Luís, curiosamente, e tinha uma papelaria/livraria no meu bairro. Foi sempre lá que comprei o meus livros escolares e também foi lá que comecei a aprofundar a minha entrada no mundo dos livros difíceis (a biblioteca da minha mãe, apesar de bem recheada, não tinha tudo o que um tipo como eu, com 16 ou 17 anos, precisava de ler). Também era na loja do Sr. Luís que eu comprava as centenas de revistas que consumi na minha juventude, para além da sacro-santa Onze Mondial, que comprava todos os meses, várias outras revistas foram lá encontradas como se de um Santo Graal se tratasse. O Sr. Luís trabalhou durante imensos anos na sua loja, até que se reformou. Com a sua reforma, acabou também o lugar onde eu descobri como era possível dominar um livro (se é que isto será, alguma vez, possível).
Como ele, outras pessoas que mais tarde conheci, fazem um trabalho ímpar, nos seus bairros, nas suas cidades, nas suas regiões. Lembro-me do Joaquim Gonçalves, actualmente em Sines, e da Isabel Castanheira, nas Caldas da Rainha. Ainda o mês passado, num encontro em Torres Vedras, alguém dizia à Isabel que «metade da [sua] biblioteca tinha sido comprada na 107». São coisas que se ouvem poucas vezes, nenhumas. Porque o mistério dos livros é, cada vez mais, algo que está escondido da nossa imaginação. Agora preocupamo-nos com outras coisas. Com as margens, com os preços, com as vendas. Agora ficamos realmente muito chateados se os nossos livros não estão em destaque, não têm os seus cinco minutos de fama, não aparecem nas páginas de uma qualquer revista mensal. Agora achamos que os livreiros são uns chatos, especialmente aqueles que ficaram nas pequenas cidades onde é caro chegar e onde não se vende nada.
Estamos profundamente esquecidos do facto da maioria de nós ter precisado de um livreiro para sermos o que somos hoje. E estupidamente convencidos de que o futuro é feito de uma série de coisas que, na realidade, não nos servirão para nada, caso não existam pessoas em todo o mundo que, contra todas as expectativas, insistam em gastar os dias no trabalho de maravilhar alguém com um livro. É uma coisa muito simples, e de tão simples parece fácil, e de tão fácil todos estamos a deixar de a fazer. Um destes dias, a Isabel também se vai reformar, e depois o Joaquim, e depois todos os outros que, como eles, ainda nos fazem acreditar que o livro é um amor para toda a vida. Quando já não sobrarem eles, talvez já não sobre uma parte demasiado importante de nós próprios.
(*) Luís Filipe Cristóvão é escritor e gestor criativo na Livrododia Editores e Livreiros.
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