LER O QUÊ AMANHÃ?,
por Maria do Rosário Pedreira (*)
por Maria do Rosário Pedreira (*)
Nasci no final dos anos 50, de pais leitores, num país com uma taxa de analfabetismo que nos fazia corar diante de muitos países da Europa; e pertenço – julgo eu – à última fornada que pôde compreender, sem ser «emprenhando pelos ouvidos», a diferença entre viver em ditadura e viver em democracia. Não tive parentes presos, perseguidos ou torturados por discordarem do regime, nem vivi clandestinidade de nenhum tipo – é bom dizê-lo, para o leitor afastar qualquer tentativa de heroísmo das minhas intenções. Mesmo assim, com uns míseros 9 anos e a altura ridícula de 1,27 m (era, pelo menos, o que dizia o BI), fui fazer o exame da quarta classe e a primeira coisa que o júri me perguntou, numa sala onde havia um enorme retrato de Marcello Caetano, foi quais eram os meus deveres para com a pátria… Não posso dizer que isto me tenha exactamente traumatizado, mas a verdade é que, até hoje, não o esqueci, tal como não esqueci a frequência com que apareciam polícias com cães à porta do Instituto Superior Técnico à hora que regressava a casa depois das aulas do então Ciclo Preparatório e percebi que ninguém me queria explicar o que ali iam fazer… Mas soube-me bem, já no 5.º ano (actual 9.º), em 1974, participar de reuniões gerais de alunos e gritar «Saneamento!» à porta do Ministério da Educação, experimentando os primeiros eflúvios da liberdade; e saber, muitos anos mais tarde, que uma freira que fora minha professora de Religião e Moral acabara, afinal, nas FP-25… Adiante.
Antes do 25 de Abril, grande parte dos Portugueses não sabia ler; outros reconheciam apenas as letras que os ajudavam a apanhar o autocarro certo e sabiam conferir os trocos para não serem levados no mercado; e mesmo aqueles que andavam a estudar como eu eram, quantas vezes, a primeira geração alfabetizada das respectivas famílias (que faziam um enorme esforço para os mandarem à escola), pelo que tinham crescido quase de certeza sem livros em casa. Destes, com o milagre da democratização do ensino, muitos entraram comigo na universidade e terminaram os cursos com maior ou menor dificuldade, mas lendo, quase sempre, a bibliografia que os professores indicavam e que, sem excepção, incluía ensaio e literatura de respeito. Porém, com diploma ou sem ele, aqueles que só leram esses livros ficaram sempre um pouco desfasados dos que liam desde crianças, e nunca me esqueço de uma colega do 3.º ano do curso de Línguas e Literaturas Modernas – hoje quiçá a desempenhar funções como professora – ter dito, num debate sobre a contracepção na aula de Inglês (em finais de 1970 as aulas de línguas serviam, como todas as outras, também para exprimir posições «políticas»), que se recusava a ter filhos porque os partos alargavam a vagina e, depois deles, as mulheres nunca mais sentiam prazer no acto sexual.
Claro que nem toda a gente era assim ignorante, mas esta história extrema serve-me para dizer que sempre me pareceu que esta ausência de senso comum e de cultura geral (de que serve ter lido Dürkheim, Weber, Gramsci ou Barthes se depois nada se sabe dos factos da vida?), vem muitas vezes da não-leitura, da impossibilidade de aceder ao livro desde a infância. Também por isso, percorri os primeiros dez anos de actividade editorial imbuída do espírito de que o editor – substituindo-se a uma escola que alfabetizava, mas, pelos vistos, não cultivava – era, com o jornalista, um agente de formação e informação essencial. O «slogan», aliás, dessa primeira editora onde trabalhei era (e julgo que permanece): «Livros que fazem leitores.» Um lema para mim.
Aplaudi, por isso, ao longo do tempo, uma certa «dessacralização» do livro, o alargamento da sua venda aos supermercados, a criação da rede de bibliotecas públicas, um acesso mais informal e descomprometido à leitura. E quando, depois de um interregno de dois anos, regressei à edição em 1998, o panorama tinha mudado consideravelmente e saudei com igual entusiasmo o aparecimento de novos leitores (leitoras, sobretudo), que de uma vez por todas largavam a revista Maria e se atreviam a um livro só de texto e com mais de uma centena de páginas. Lembrava-me de o editor com quem trabalhara tomar sempre como exemplo a grande percentagem de leitores do Reino Unido e – sei lá se ingenuamente – acreditei que um dia chegaríamos lá; mesmo que se começasse por esse género a que se convencionara chamar «literatura light», talvez fosse possível passar-se depois para algo mais sumarento, mais carnudo, mais respeitável. Porém, embora seja ainda muito cedo para provar o contrário, a verdade é que já me desenganei. Porque, na ânsia de vender a um maior número de leitores – a todos esses que emergiram na década de 90 –, mesmo as editoras de referência se deixaram ir na voragem do sucesso fácil e cortaram dos seus catálogos muitos dos bons autores que publicavam por se venderem pouco. E a escola (e nela incluo a universidade) está provavelmente cheia de professores que, por só terem lido aquilo a que foram obrigados e nada mais, também não conseguem transmitir o prazer e a importância da leitura na formação humana e social.
Em democracia, trinta e cinco anos depois, quando, afinal, se pode ler tudo sem a ameaça do lápis azul, lê-se exclusivamente por entretenimento, e não para saber, para pensar, para poder estar contra, para formar ideias, para entender (ou não entender) o mundo. (E nem se diga que a democracia nos dispensa deste exercício, pois a crise a que chegámos prova bem que custos pode ter a incapacidade de uma visão prospectiva.) Desapareceram dos escaparates, como aqui já foi referido por Pedro Bernardo, os ensaios, rapidamente substituídos por biografias de reis e rainhas portugueses, escritas num português sofrível por autores que cometem erros históricos de pôr os cabelos em pé. E a grande ficção – essa que atravessou os tempos com a agradável ameaça da eternidade – quase só subsiste pela curiosidade em relação ao aparecimento de novas traduções – Proust, Musil, Dostoevski, Homero –, embora esteja convencida de que quem as lê seja quem já conhecia as antigas ou leu versões amputadas ou noutras línguas dos mesmos livros. Além disso, porque pensarão as pessoas que a leitura activa não é uma excelente forma de entretenimento?
Bem sei que agora, que perdi a inocência nestas coisas e pude viajar mais, também já sei que essa grande percentagem de leitores do Reino Unido (que, curiosamente, está a diminuir pela primeira vez por causa da Internet e afins) lê, sobretudo, «trash», pelo que Portugal não faz senão herdar os tiques da globalização, embora com o atraso que lhe é típico. Bem sei que agora, que perdi a inocência nestas coisas, faço aqui o meu acto de contrição e digo que também eu publico livros que prometem vendas rápidas – mesmo procurando que tenham uma estrutura irrepreensível, não estupidifiquem os leitores e, sobretudo, não incluam linhas de pensamento redutoras – para, com esse dinheiro, poder publicar jovens que escrevem literatura séria. Bem sei que agora, com a criação do Plano Nacional de Leitura, todos os alunos – seja qual for a sua origem ou nível de ensino – têm igual acesso ao livro (e nas visitas que faço a escolas encontro sempre nas bibliotecas exemplares muito manuseados, o que é um óptimo sinal). Bem sei, para terminar, que ainda não se inventou nada melhor do que a democracia e que não estaria aqui a dar opiniões (ou a reflectir, melhor dito) se não tivesse passado por esse episódio mágico e absolutamente necessário aos 14 anos. Mas quanto mais infantilizados e incultos nos tornarmos, mais facilmente seremos dominados, tal como o fomos quando éramos maioritariamente analfabetos. Ler e dar a ler livros de qualidade não poderia então ser um dos nossos deveres para com a pátria?
(*) Maria do Rosário Pedreira é editora e escritora. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, ingressou na carreira editorial em 1987, sendo actualmente editora da QuidNovi. É autora de livros de poesia, ficção e literatura infanto-juvenil.
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