quarta-feira, 22 de abril de 2009

Opinião: Eu embargo, tu embargas, ele embarga – e por aí fora, por Hugo Torres

EU EMBARGO, TU EMBARGAS, ELE EMBARGA – E POR AÍ FORA,
por Hugo Torres (*)

Venho pensando que a minha geração – os miúdos que seguem nos vintes – é uma privilegiada. Não que ouça o mar ao entardecer, não que não faltem coisas por que desejar, claro. São várias as razões e não quero pôr-me aqui a enumerar, aborrecidamente. Mas, à parte tudo o que é benefício darwiniano de ter nascido nos oitentas (vamos chamar-lhe assim, por piada), isto é uma luta, pá.

As gerações anteriores querem que paguemos essa condição favorecida. Talvez merecidamente. Afinal, estamos tão oleados pelas facilidades dos novos tempos que pode bem ser uma questão de justiça. Inclui-se aqui também a fatia de gente ligada às artes que, pensamos, será mais informada e consciente que os demais – é precisamente porque estes e aqueles vão tendo condutas idênticas que consideramos que é possível terem razão.

Ainda na semana passada era publicitado por uma editora com sede em Lisboa, no célebre «carga de trabalhos», um anúncio de emprego. Precisa (o anunciante) de alguém que ajude e faça de roda dentada. De maneiras que procuram um estagiário «em full-time». Probos, sabem que até um desses jovens recém-licenciados, que – como direi? – são sete cães a um osso, não podem trabalhar para outrem e pagar por cima: «Oferece-se subsídio de alimentação e transporte.»

O extraordinário é que se propõe que o estágio se passe ao longo de nove meses, como na tropa. Ora, nove meses, com o tomate a um euro e sessenta, é muito tempo. De nove meses (a um ano) é um estágio profissional – e o mesmo é dizer que o moço ou a moça se fazem pagar com qualquer coisa entre os 800 e os 900 euros, mais os tais subsídios de alimentação e transporte, que a sós devem rondar os 150 euros, passando às vezes os mil finais. O que ajuda a compor uma salada digna ao final do dia.

De um lado, encolhem-se os ombros; do outro, sangra-se a indignação pelos olhos, tal como um touro enraivecido na arena – e o touro vai morrer, o touro é grande mas vai morreu, o touro já morreu. A mim – e isto atinge-me directamente – dá-me para rir. (Tenho para mim que o próprio Lamarck poderia explicar esta minha condição com dois ou três pontos da sua teoria evolutiva.) Há qualquer coisa de humor britânico nisto. Refinadíssimo.

Aposto que o anúncio recebeu dezenas de respostas (centenas?). Dobro a aposta: estou certo de que o anunciante fará uma escolha minuciosa, criteriosa, e é possível que recrute alguém muito bom naquele trabalho. É o desespero transversal, sim. Mas é mais: todos sabemos que é sobretudo nos cafés que se fazem futuros, não nos concursos ou nas agências de emprego. É também uma questão de referências e a amizade nas trocas comerciais não é um mal por si só, sendo mesmo compreensível e aceitável casuisticamente.

Emprego gera emprego. É como a violência. E há quem acredite e vá e se sujeite. Inevitavelmente. Não há como embargar as tentativas de felicidade. No entanto, teremos de lembrar, quando as nossas reclamações não se cumprirem, que: «Não há mas. Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal.»

(*) Hugo Torres dirige o portal cultural
Rascunho, é co-autor do blogue Húmus e correspondente da revista espanhola Zona de Obras.
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