ANOTAÇÕES À MARGEM II: CONSUMO RESPONSÁVEL,
por Sara Figueiredo Costa (*)
Não sei se foi a «globalização», a emergência da agricultura biológica ou a suspeita mesura normalizada dos legumes que invadem os supermercados, mas o certo é que há cada vez mais pessoas a optarem por um consumo politicamente definido na altura de escolherem os seus alimentos. Preferir a fruta da época e os legumes de produtores sediados no mais pequeno raio quilométrico possível já não é uma manifestação de nacionalismo bacoco, e sim uma forma de provocar menos impacto no ambiente (e, já agora, de comer melhor: toda a gente sabe que os morangos são melhor na sua altura, e não em pleno Dezembro). E, para quem quer e pode levar a atitude mais longe, comprar produtos biológicos directamente ao produtor, em mercados semanais que começam a surgir um pouco por todo o lado, parece ser, para os citadinos sem meios ou ciência para o cultivo para gasto próprio, a forma mais eficaz de praticar um consumo alimentar responsável.
Por esta altura, quem continuou a ler a divagação agrícola, poderá questionar-se sobre a sua pertinência num texto que se esperaria sobre livros. A explicação é simples: num meio onde com tanta frequência os livros são produzidos e vendidos como batatas (aqui sem a acepção mais nobre do precioso tubérculo, mas pensando no granel despejado nas bancas do hipermercado e calibrado em função do «gosto do público»), a metáfora agrícola parece-me a mais adequada para explanar a minha modesta proposta sobre a compra de livros de um ponto de vista «comprometido». Prossigamos então, entre batatas e grandes superfícies.
Quais são os grandes motivos que levam os consumidores ao hipermercado para a aquisição das tais batatas? De um ponto de vista da economia doméstica, arrisco três: o preço, a diversidade e o horário do estabelecimento. Três motivos que encontram semelhança quando transpostos para a compra de livros. Dirigimo-nos a uma grande superfície livreira (seja um hipermercado, seja um dos gigantes do costume) para comprar livros, porque o seu preço é mais baixo, a diversidade é uma constante (mesmo que dentro de parâmetros que, no fim, acabam por não ser tão diversos assim) e o estabelecimento costuma ter horários alargados. Parêntesis: claro que não estou a esquecer-me do facto de, tanto nas batatas quanto nos livros, as grandes superfícies beneficiarem da presença de outros produtos no mesmo espaço; estou apenas a fazer aquilo que um texto de opinião permite, ou seja, a ignorar propositadamente esse facto porque me dá mais jeito para prosseguir o meu raciocínio, num gesto que será pernicioso para alguns e muito acertado para outros. Adiante. Ora, a ideia de que, num mercado ou num estabelecimento comercial que escape ao formato «grande superfície», não encontramos nenhum desses três factores já está desactualizada. Nas batatas (e basta ter lido o volume de crónicas do Miguel Esteves Cardoso, Em Portugal Não Se Come Mal, Assírio & Alvim, para o confirmar), ficamos muito melhor servidos se nos dirigirmos à praça. O senhor António escolherá as batatas de entre as variedades que tem em função do nosso desejo gastronómico, seleccionará as melhores e ainda nos dirá que foram apanhadas há uma semana e que «estão mesmo boas para assar com um pernil e um bocadinho de alecrim». Não são mais caras que as do hipermercado, sobretudo porque metade delas não estará podre (metade pela qual pagaríamos no hipermercado, sem conseguirmos deslindar a sua frescura por entre a molhada disforme do saco importado de França). Certo, a praça fecha cedo e nem todos temos horários para isso. Mas as mercearias de bairro já vão percebendo que os horários já não são o que eram, começando a adaptar-se aos clientes. E as que não se adaptaram, talvez o façam se os clientes o propuserem, fazendo o patrão ou a patroa perceberem que ganhariam mais com outro horário. No ramo biológico, o mesmo se passa. E se ainda não se passa fora dos grandes centros urbanos, será uma questão de tempo e de insistência da clientela. Com os livros, tudo igual. Posso ir a uma grande superfície livreira perguntar por um certo livro, e encontrá-lo no escaparate se for uma novidade (muito, muito recente) ou procurá-la nas estantes, e até posso ter a sorte de encontrar um funcionário que maneje bem a base de dados do computador. Mas fico melhor servida se me dirigir a uma livraria, daquelas a que agora chamamos «independentes». O mesmo senhor António (que já toda a gente percebeu que é só um recurso) dará conta das novidades que recebeu e que, como ele bem sabe, me podem interessar. Recomendará livros, falará de uma encomenda que lhe chegou que é um achado, de um certo livrinho que não se via no mercado há uns anos, perguntar-me-á o que achei do livro tal e concordará ou discordará. O horário... Bem, ainda não temos todas as livrarias a fecharem à mesma hora das grandes superfícies, mas já temos muitas que estão abertas ao sábado e que fecham lá para as oito da noite, e temos uma ou outra até mais tarde, sobretudo nas zonas onde há diversão nocturna (falo de Lisboa, que é o que conheço). Ah, mas, e o preço? Bom, toda a gente sabe que o atractivo da FNAC, no que aos preços diz respeito, eram os dez por cento de desconto sobre o preço do editor. Agora, esses dez por cento são só para os portadores de cartão FNAC, tal e qual como já acontece noutras livrarias: faz-se o cartão, fideliza-se o cliente e o desconto é o mesmo, tudo sem precisarmos de pôr o pé na grande superfície. Chegámos ao ponto em que confirmamos que os principais atractivos de uma grande superfície livreira já podem ser encontrados numa quantidade razoável de livrarias independentes. Passamos agora para a parte em que deixamos de lado a igualdade desses pontos e matutamos no interesse de preferir as livrarias independentes, preterindo as grandes superfícies comerciais. Quem estiver a desconfiar que vem aí um chorrilho romântico com laivos esquerdistas de quem ignora que na sociedade global nos basta a Internet e a Amazon e os eBooks nas suas várias vertentes e variedades para lermos os livros que queremos, fique sabendo que tem toda a razão. E diz este chorrilho romântico, etc., etc., que o ponto onde o consumo responsável de batatas volta a encontrar-se com o consumo responsável de livros é este: por cada livro que compramos numa grande superfície em detrimento de uma livraria independente (que seja da nossa confiança e que dê provas de competência e bom gosto; o chorrilho é romântico, mas não acha que todas as livrarias são maravilhosas só porque são independentes), estamos a investir na velocidade desmesurada a que os livros desaparecem dos escaparates, no predomínio de livros de determinadas editoras unicamente pelo mérito financeiro (estão lá porque a editora comprou o espaço; não estão lá outros porque não puderam fazê-lo, mesmo que tenham editado um livro excelente sem o qual nenhuma ilha deserta é digna desse nome), na frequente incompetência de funcionários que vendem livros como venderiam batatas, desconhecendo quase tudo a seu respeito, no fraco investimento do patrão nesses mesmos funcionários (que, se calhar, não se dão ao trabalho de aprender um pouco mais sobre os livros porque têm um contrato precário e daí a três meses estão no Pingo Doce a repor batatas, ainda por cima calibradas e bolorentas), na ideia aberrante de que os livros que vendem poucos exemplares não merecem lugar na livraria, na existência de fundos onde as lacunas são assustadoras. Pelo contrário, escolhermos uma ou duas livrarias e passarmos a concentrar as nossas compras lá, mantendo com os livreiros uma relação fiel, pode trazer-nos resultados inesquecíveis. Só um livreiro que confia no nosso bom gosto bibliográfico e que preza a nossa visita regular nos guardará um dos 150 exemplares do último livro da Averno, nos desencantará uma edição dos anos 80 da colecção «Forma», da Presença, nos avisará de que vai sair um livro novo de um dos nossos autores de cabeceira ou nos mostrará uma ou outra edição estrangeira que talvez nunca chegue a Portugal, mas que aquela livraria encomendou por saber do nosso interesse. E depois, com o passar dos anos, vão chegando todos os privilégios que as relações duradouras permitem e que, no caso dos livreiros, podem passar pela partilha de histórias que acabarão por formar parte daquele património que queremos passar aos vindouros (falo por experiência própria), mesmo que, à conta de estoirarmos o dinheiro todo em livros, não tenhamos mais nada para lhes legar... Em resumo displicente, escolher uma ou duas livrarias independentes que estejam à mão e nos mereçam a confiança está para a literatura e a cultura impressa como as batatas biológicas estão para o meio ambiente. Os néscios dirão que lhes é indiferente de onde vêm as batatas, desde que lhes cheguem ao prato. E dirão o mesmo dos livros, defendendo o conforto multimédia das grandes superfícies livreiras. Mas, para todos os que se preocupam com o que serão as livrarias daqui para o futuro, para todos os que não ficam indiferentes se editoras com menos poder negocial desaparecerem dos escaparates por falta de dinheiro para os alugar, para todos os que acreditam que a livraria é um espaço sem o qual a vida em sociedade não teria o mesmo encanto, a escolha é óbvia. A visão da livraria que aqui se esboça pode ser tão romântica quanto o chorrilho lá de cima, mas a certeza de que as livrarias independentes desaparecerão se os clientes as preterirem em função dos grandes espaços é, temo bem, uma realidade incontornável. É só decidir onde se fazem as compras.
(*) Sara Figueiredo Costa é colaboradora de diversas publicações, entre elas o Expresso e a Time Out, assinando crítica sobre literatura, banda desenhada e ilustração. Mantém os blogues Cadeirão Voltaire, onde escreve sobre livros e leituras, e Beco das Imagens, em co-autoria, onde escreve sobre banda desenhada e ilustração.
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