quarta-feira, 29 de abril de 2009

Dossiê Os Meus Livros: «A minha vida deu um best-seller»

A Os Meus Livros publicou na edição deste mês um dossiê dedicado aos títulos lançados para o mercado que têm por núcleo central experiências pessoas de anónimos. O artigo conta com diversos testemunhos. Um texto de Filipa Queiroz. Este texto apenas está disponível na integra na versão em papel.

«A minha vida deu um best-seller

Quase uma década depois do fenómeno televisivo Big Brother a exposição da vida de cidadãos anónimos parece ser a grande fórmula do mercado livreiro actual. Em foco estão histórias trágicas, aventuras, viagens e até animais de estimação.

A televisão esforça-se por dar cada vez mais voz à opinião pública e estamos ainda no rescaldo do furor dos “reality shows”. O que é que isto tem que ver com livros? À partida, nada. Não fosse o facto de os relatos de anónimos sobre as suas histórias de vida estarem a afirmar-se como uma tendência do mercado livreiro – o voyeurismo está na moda, também na literatura. O editor da Magnólia, Jorge Reis-Sá, não guarda dúvidas de que estas obras autobiográficas «se enquadram na globalização mediática pós-Big Brother». Os principais motivos por trás do seu sucesso parecem ser a influência dos media e a identificação do leitor com a experiência relatada.

A Magnólia é uma das várias editoras que, em Portugal, têm apostado nestas histórias da vida real. “Irene – É Possível Renascer”, de Edite Esteves, é exemplo disso. A história é a de uma mulher de 34 anos, vítima de alegada negligência médica, que se socorreu da referência da sua avó Irene para escapar à morte. Também a tradução da obra britânica “Porque Saltei”, de Tina Zahn, sobre uma tentativa de suicídio, provocada por depressão pós-parto e altamente mediatizada nos Estados Unidos da América (EUA), em 2004. Obras que, diz Reis-Sá, contam «histórias que mereciam destaque» e que atingiram «vendas satisfatórias».

A ideia não é nova. Por exemplo, em 1978 os jornalistas Kai Herrmann e Horst Rieck lançaram o nome de Christiane F. nas bocas do mundo.

Ou, melhor, nas prateleiras, com a história trágica de envolvimento com drogas e prostituição da adolescente alemã. Em Portugal, há mais de uma década, as Edições ASA foram pioneiras na criação de um segmento inteiramente dedicado aos relatos de autores desconhecidos, com especial inclinação para a já apelidada de “misére memoir” – histórias trágicas, geralmente de mulheres, oriundas de países devastados pela guerra ou onde os seus direitos são insistentemente corrompidos. Da colecção “Documento” fazem parte títulos como “Queimada Viva”, “Mutilada” e “Inocência Perdida”. Cisjordânia, Senegal, Camboja. Para Março está agendado o lançamento de “Sobrevivi”, testemunho de Immaculée Ilibagiza, mulher que resistiu ao Holocausto ruandês e que, diz-nos a editora Carmen Serrano, já há quem apelide de “Anne Frank do Ruanda”.

Vivências trágicas, vítimas dos estigmas das suas próprias culturas. São «uma chamada de atenção para a condição feminina um pouco por todo o mundo», defende a editora da ASA. «Cada um destes relatos é um grito de revolta, é um testemunho importante, de publicação quase obrigatórias para quem se interesse e preocupe com o mundo que o rodeia», realça. A colecção «tem crescido exponencialmente ao longo do tempo» e, para Carmen Serrano, a curiosidade relativamente a culturas diferentes, a actualidade política e o crescente interesse pela defesa dos Direitos Humanos estão na origem do sucesso deste tipo de publicações. Quanto à motivação da ASA para publicar estes títulos, Carmen fala de uma «preocupação humanitária», porque «temas como a exploração sexual, abusos e desrespeito pelos direitos humanos não são pertença exclusiva dos meios de comunicação social ou das academias [mas] têm e devem ser expostos, debatidos e combatidos», considera.

“Lágrimas do Darfur”, de Halima Bashir, relato de uma mulher africana que sobreviveu ao genocídio, é uma aposta recente da Porto Editora. O editor, Manuel Alberto Valente, que se mudou da ASA de ‘armas e bagagens’ há um ano, opina que as histórias de vida «não são uma das linhas de força da programação editorial» mas «não se podem ignorar as tendências». Para o editor, o voyeurismo e maior vulnerabilidade do público leitor, que também se ampliou com a chegada deste género de livro, são os principais motivos para o sucesso comercial destas obras. “Uma Vida Normal”(Porto Editora), do português Paulo Azevedo, é o exemplo de uma linha que tende a aumentar. Apesar da aposta ser “contida”, Manuel Alberto Valente adiantou que a editora vai lançar um livro de auto-ajuda brevemente.

Exemplo de coragem é também “A Última Aula” (Editorial Presença), o formato escolhido por Randy Pausch, Professor de Ciência Computacional na Carnegie Mellon University, para se despedir do mundo e daqueles que tanto amava, quando descobriu ter um gravíssimo cancro do pâncreas. “Conquistar os Nossos Sonhos de Infância” foi o título com que baptizou a sua intervenção, num discurso divertido e frontal, dando uma gigantesca lição de vida a todos os que assistiram no local, ou nas inúmeras visualizações registas no Youtube durante os meses seguintes.

Internet pode ser a chave

Os media são os primeiros a interessar-se por estas histórias, na opinião de José Prata. Para o editor da Caderno e da Lua de Papel, o segmento de relatos de anónimos «está a ganhar cada dia mais expressão» devido à atenção mediática e aos avanços tecnológicos. Com o ‘boom’, na Web, dos sites de auto-publicação como o Lulu (www.lulu.com) ou o Blurb (www.blurb.com), publicar uma obra está ao alcance de qualquer um. Fala-se muito de livros na Internet. E, por vezes, desse “passa palavra virtual”, a que se junta alguma atenção mediática, podem nascer best-sellers.

Aconteceu a Lisa Genova, ex-consultora de empresas farmacêuticas, autora de “Still Alice”. Depois de ser rejeitada por uma centena de agentes literários, Genova pagou cerca de 400 Euros ao atelier de publicação norte-americano iUniverse (www.iuniverse.com) para publicar o seu primeiro romance e vendeu algumas cópias dessa edição de autor a livrarias independentes. Através de uma espécie de campanha viral online via MySpace e YouTube, “Still Alice” foi descoberto por outro autor que, por sua vez, apresentou Genova a um agente, que vendeu a obra por alguns milhões à Pocket Books, editora da gigante Simon & Schuster. O livro foi relançado e já entrou na lista de best-sellers de ficção do New York Times.

“Ainda Alice”, a história de uma mulher a quem é diagnosticada Alzheimer precoce, vai ser brevemente publicado em Portugal pela Caderno. Louise Burke, da Pocket Books, disse ao New York Times que «as editoras agora procuram novo material pesquisando comentários de leitores sobre livros independentes vendidos online». O caso de Genova ainda é, no entanto, uma excepção.

Alquimia do sucesso?

Outra descoberta da Simon & Schuster foi o livro “O Segredo” (Lua de Papel), de Rhond Byrne, obra de não-ficção mais vendida em todo o mundo que voltou a ser este ano, e pelo segundo consecutivo, o livro mais vendido em Portugal. No mesmo ano, a ilustre desconhecida Rhonda Byrne foi considerada uma das cem pessoas mais influentes do mundo pela revista Time. José Prata, editor responsável pela publicação de ”O Segredo” em Portugal, disse recentemente ao Público que “um livro de não-ficção ser o que mais vende em Portugal já é raro, se ainda por cima for de auto-ajuda, mais raro se torna. E se consegue repetir a proeza em dois anos seguidos quebra todas as regras”.

Muito discutido na praça pública, o livro, que revela testemunhos de vinte e quatro “mestres do Segredo”, especialistas em marketing e motivação pessoal, tem como fio condutor a teoria da lei da atracção: “Nós atraímos aquilo que queremos, inclusive o sucesso”. E não será nessa premissa que, apesar de não ser novidade, assenta a actual tendência do mercado livreiro? Segundo Sofia Ribeiro, editora da Bertrand, a resposta é afirmativa, lembrando-nos que «há muito que se escrevem e lêem memórias de pessoas comuns, que têm até exercido um forte impacto na sociedade e nas mentalidades. Basta pensarmos nos primeiros relatos de escravos, ou de mulheres, ou de experiências que denunciam aquilo que se passa pelo mundo fora. Mais recentemente, muitas vozes com experiências menos radicais, mas que ilustram bem o espírito do nosso tempo, têm explorado novos caminhos, por vezes com resultados surpreendentes», refere.

“Comer, Orar, Amar” (Betrand) ilustra bem esse êxito. Com cinco milhões de exemplares impressos só nos EUA, a história narra a inusitada fuga do sonho americano de Elisabeth Gilbert, escritora e jornalista das revistas GQ e SPIN. Tomado como estandarte por Oprah Winfrey e Hillary Clinton, como por vários grupos de fãs, a viagem de Elisabeth a “Comer [na Itália], Orar [na Índia] e Amar [na Indonésia]” personifica a determinação de quem um dia concluiu que não era feliz e decidiu mudar. «No fundo, este livro tem elementos de autobiografia, literatura de viagens, culinária, espiritualidade e auto-ajuda. É um mosaico ímpar de experiências e emoções», diz Sofia Ribeiro daquele que «foi um dos maiores sucessos de vendas da Bertrand no ano passado e continua nas listas de livros mais vendidos em 2009». Dentro do género, a editora acabou de publicar “Duende” e prepara-se para lançar “Julie e Julia”, que vem reforçar a aposta da Bertrand no segmento. “Julie e Julia” é, aliás, o vencedor do primeiro Blooker Prize (2006), galardão que premeia livros baseados em blogues, criado pela editora online Lulu.
«A identificação do leitor com o autor é fundamental, o que não significa que tenha de partilhar com ele exactamente a mesma experiência, mas sim que a reconheça», continua Sofia Ribeiro. E acredita que «aquilo que inspira verdadeiramente o leitor é o facto de estar perante a história de uma pessoa de carne e osso, comum, parecida consigo no sentido em que enfrenta problemas e desafios idênticos, mas que encontra na sua vida alguma coisa que o eleva, que sublima a sua existência».

O melhor amigo... do leitor

Não se pense, porém, que estes relatos partem sempre de provas dolorosas ou experiências limite. Podem ser, simplesmente, livros sobre animais de estimação. A Casa das Letras tem sido uma das editoras a apostar neste género, com obras como “Marley & Eu”, de John Grogan; “Um Amigo Chamado Henry”’, de Nuala Gardner; e o mais recente “Como Salvar Um Coração Partido”, de Susan Richards. O primeiro, baseado nas histórias vividas por um casal e o seu cão trapalhão e mal-comportado, já tem adaptação ao grande ecrã. O filme conta com Owen Wilson e Jennifer Aniston nos principais papéis e chegou recentemente às salas portuguesas. Já “Um Amigo Chamado Henry”, com dimensão dramática mais substancial, é um relato de uma mãe cujo filho autista venceu a doença graças à ajuda de um cão. Finalmente, o livro de Richards conta a história do impacto que a adopção de uma égua maltratada teve na sua vida. O exemplo mais arrebatador é, porém, “Dewey – O Gato que Comoveu o Mundo”(Caderno), best-seller que transformou a vida de Vicky Myron (ver caixa), uma anónima bibliotecária norte-americana. Quase que podia escrever-se o livro sobre a história deste livro. Vicky foi convidada – por um milhão de euros – a narrar a história daquela que, durante 19 anos, foi uma célebre mascote da Biblioteca Pública de Spencer, no Iowa: um gato amarelo, ao estilo “Gato das Botas” no filme ”Shrek”, curiosamente baptizado de Dewey ReadMore Books.

«É uma espécie de estrela pop do universo dos gatos», atira José Prata, editor da Caderno, que relativiza o êxito: “é apenas mais um livro entre muitos que se destacam». Pratas lembra que histórias com animais sempre foram publicadas em Portugal, e dá o exemplo de “Cão Como Nós” , de Manuel Alegre. O editor defende que este tipo de livros funciona através da «ligação afectiva» que as pessoas estabelecem com eles – e revela que, curiosamente, foram os cibernautas portugueses os que mais encheram a caixa de comentários do blogue de Vicky Myron.

Como “Marley & Eu”, “Dewey” vai ser adaptado ao cinema. De acordo com fonte da Caderno, «estão a decorrer as negociações e a actriz Meryl Streep, galardoada com um Óscar, irá protagonizar o filme».

E a secção zoófila ganhou recentemente mais um elemento: “Querido Ollie”, de Stephen Foster, publicado pela mesma editora. É “uma espécie de Marley & Eu inglês”, diz José Prata, do livro que constitui o relato da aventura de Foster em domesticar o cão abandonado que adoptou. Best-seller internacional, “Querido Ollie” já consta da lista dos mais vendidos do jornal britânico “Sunday Times”.

Animais, Franz Kafka, auto-ajuda, Ernest Hemingway, memórias e relatos, José Saramago. Partilham escaparates de livrarias. Há quem os distinga entre livros e literatura mas, na hora de comprar, muitos deixam os cânones nas prateleiras.»

Veja aqui os conteúdos da revista Os Meus Livros de Maio, dedicada à Feira do Livro.