Deixamos um excerto retirado da obra que chegou esta semana às bancas.
«A sua tese do voto em branco no Ensaio Sobre a Lucidez foi considerada na altura uma grande provocação. Esse era o objectivo?
Sim. Porque uma democracia que não se decide, que não sabe que uso fazer dos votos expressos – ou que às vezes sabe muito bem o que é que há-de fazer dos votos expressos, exactamente o contrário daquilo que foi prometido aos eleitores – chega a um momento em que faz uma pessoa perder a paciência. (…) Recordo a eleição descrita na Morgadinha dos Canaviais, do Júlio Dinis, em que os labregos lá da terra já estavam todos munidos do seu papelinho e depois, entre as personagens importantes da história, há uma mudança e no último instante os papéis que votavam numa pessoa foram substituídos para passar a votar noutra. Esses homens – essas mulheres não, porque nessa época não tinham direito a voto – votaram com igual inconsciência, votaram consoante alguém ordenou, no caso o patrão, que por ter interesses próprios deixou de apoiar um e passou a apoiar outro e pôs os seus empregados e subalternos – gente em muitíssimos casos analfabeta – a votar noutra pessoa. Isto é democracia? Isto é também uma comédia, só que uma comédia que tem consequências muito graves e uma delas é que da democracia à demagogia vai um passo – que está constantemente a ser dado, pois os políticos não respeitam a sua própria palavra –, mesmo quando se diz que a democracia é o menos mau dos sistemas. É possível que sim, mas como nunca se fez nenhum esforço para encontrar outro melhor alguém tem de o criticar. Mas não serei eu a dizer «acabemos com a democracia». E haverá que acabar com esta democracia, este modo de pensar e de viver, e este sistema tem de passar por uma mudança radical, mas como sou contra a abstenção – aí sim, sou radicalmente contra – o que eu pensei foi que a participação do cidadão num acto eleitoral pode não se limitar à escolha entre um partido e outro e outro e outro, pode pôr lá um papel em branco que significa que não votou em nada e em ninguém em particular mas que foi ali dizer «não fiquei em casa, mas para mim o sistema funciona mal».»
Uma Longa Viagem com José Saramago, João Céu e Silva, Porto Editora, Pág. 319