PÚBLICO E MASSA CRÍTICA: DOIS CASOS,
por Maria do Rosário Pedreira (*)
Hoje, quando conto esta história, deixo sempre alguém boquiaberto; mas, sendo a mais pura verdade, não vejo razão para que o espanto que sempre causa me impeça de a partilhar mais uma vez (até porque, confesso, costumo divertir-me bastante com as reacções). Adiante.
Era eu aluna do segundo ou terceiro ano da Faculdade de Letras de Lisboa quando saiu para as livrarias o primeiro romance de António Lobo Antunes, Memória de Elefante; e, embora o seu sucesso tenha sido retumbante, é forçoso dizer – e agora podem ficar boquiabertos – que alguns dos meus professores se mostraram indignados com tal êxito, negando que a obra fosse genuína literatura e levando-nos, inclusivamente, a pensar que, em certas aulas – se não queríamos passar por frívolos ou tontos –, era melhor não referirmos que a tínhamos lido e ainda melhor não confessarmos que a tínhamos apreciado. As vendas, porém, proliferavam, multiplicando-se as novas edições; de tal modo que ainda não tinha passado um ano e já o segundo título do autor estava cá fora, seguindo o mesmo caminho do anterior.
Serve isto para dizer que, nos meus tempos de estudante, a massa crítica (ou pelo menos a parte dela que me calhou em sorte) desconsiderava a obra de um autor que hoje é só um dos mais consagrados da literatura nacional (e quiçá mundial) e tantas vezes apontado para o Nobel (sobretudo antes de ele lhe ter sido arrebatado por outro português), embora o público leitor (e aqui destaco as mulheres, nada indiferentes ao jovem psiquiatra de olhos azuis) fosse cada vez mais entusiasta de um tipo de romance que, realmente, era completamente novo no Portugal da altura.
Mas, afinal, que aconteceu? Assim às pressas, seria lícito pensarmos que, recomendando agora o que antes repudiava, a universidade baixou o seu nível de exigência (até porque hoje ensinam nela muitos dos que leram, deliciados e sem vergonha disso, Memória de Elefante). Mas nem tudo o que é lícito é inteiramente justo. E aqui é importante referirmos que o próprio escritor (ou uma voz dentro dele, já não sabemos) evoluiu para uma escrita diferente, mais complexa e densa, tão distante da clareza que tinham as primeiras obras e hoje apenas subsiste nas suas crónicas. Assim sendo, creio podermos concluir que aquilo que o reconciliou com a academia (são hoje professores universitários os que lhe fixam as edições) foi justamente o que o afastou gradualmente de um público que parecia conquistado mas que hoje – as coisas são como são – já não tem bagagem ou disponibilidade para o compreender e apreciar. Lobo Antunes queixa-se de não ser estimado e lido no seu país como, aparentemente, o é em França ou na Alemanha; mas, se for verdade que a massa crítica é actualmente menos exigente (não podemos descartar a hipótese de, daqui a vinte anos, a universidade louvar os livros que hoje desaconselha), o público (que lê, apesar de desaconselhado, esses livros) nem se fala…
Quando, alguns anos depois desta história que contei, comecei a trabalhar na edição, um dos primeiros autores cuja obra tive o prazer de acompanhar foi Ian McEwan. Tinha sido lançado havia um mês O Jardim de Cimento, que era o seu primeiro romance (antes escrevera dois livros de short stories, que só mais tarde estariam disponíveis em Portugal), e era considerado um dos jovens mais promissores da literatura inglesa. O que escrevia era, de facto, algo de novo no panorama mundial – arrojado, elegantemente sórdido, bem construído, com enredos que, causando embora algum mal-estar (lembro-me até hoje de uma cena de Primeiro Amor, Últimos Ritos que me conseguiu deixar fisicamente maldisposta), compunham páginas arrebatadoras que nunca conseguíamos afastar dos olhos. Depois desses três primeiros livros, outros vieram nos anos que se seguiram, cada vez mais inteligentes e elaborados, dos quais destaco os geniais A Criança no Tempo e Cães Pretos. Mas, de repente, nos anos da globalização declarada, aquilo que era intrinsecamente estranho e incómodo mas intrinsecamente típico de McEwan deu lugar a uma obra que, não deixando obviamente de ser genuína literatura, me parecia ter começado a piscar descaradamente o olho ao público e ter perdido as suas marcas distintivas para se tornar uma coisa mais clara e fácil de ler, mais do agrado dos que compravam livros no final do século xx. No início, senti-me francamente desapontada: depois de um título que considero menor na sua bibliografia (O Fardo do Amor), McEwan ganhava o Booker Prize com Amesterdão, um romance que achei muito chocho ao pé dos dois que atrás referi. Mas talvez tudo não passasse, afinal, de um exercício inteligente: a sua obra posterior ao prémio, que continuo a acompanhar (julgo que o único McEwan que ainda me falta ler é Sábado, e por falta de tempo), recuperou de forma notável o nível – e é, ainda por cima, mais bela – e, apesar de McEwan se ter desembaraçado daquela força um pouco escabrosa que o definia como voz, também é verdade que conseguiu, sem perder qualidade(s), chegar provavelmente a um número muito maior de leitores. Não sei se houve uma voz dentro dele a conduzir-lhe a mão para esta literatura mais grata de consumir (mas nem por isso menos literatura), se sacrificou alguma coisa para ganhar novos públicos; mas não me consta que se queixe de nada, pois a massa crítica do seu país – os pares, a universidade, a crítica jornalística – compreendeu e aplaudiu a mudança (haverá, afinal, coisa mais complicada do que tornarmo-nos simples?) e continua a considerá-lo um dos maiores escritores britânicos da actualidade.
(*) Maria do Rosário Pedreira é editora e escritora. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, ingressou na carreira editorial em 1987, sendo actualmente editora da QuidNovi. É autora de livros de poesia, ficção e literatura infanto-juvenil.
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