ESTE OFÍCIO DE TRADUZIR,
por Jorge Palinhos (*)
por Jorge Palinhos (*)
A tradução começa ainda antes de se abrir o original que nos é depositado em mãos. Começa na conversa com a pessoa que nos entrega o livro – o editor ou coordenador da obra – e no descobrir da sua razão de cliente. Perceber a quem ele quer vender o livro e do que gosta numa tradução – que seja fidedigna ou adaptada, que seja escorreita ou autêntica, se adora notas de rodapé ou nem sequer as tolera.
Depois de se ler o cliente, é altura de ler o livro e descobrir as armadilhas, antecipar as dificuldades, decifrar o estilo, magicar estratégias. Se o autor usa a brevidade da língua original, como mantê-la num português de frases longas e elegantes? Se a sintaxe for tortuosa, como manter a ordem da informação sem que a frase fique estranha? Se o calão local abundar, devemos transpô-lo artificialmente para um equivalente português ou assumir que os regionalismos de Edimburgo são de Edimburgo e não do Porto ou de outra província portuguesa qualquer? E como decifrar o «edimburguês» mais cerrado sem lá morar três meses? Se o livro estiver cheio de redundâncias – quer por falta de concisão quer para aumentar páginas –, como resistir à tentação de «corrigir»? E se o autor repetir palavras, na mesma frase ou no mesmo parágrafo, muitas vezes sem razão aparente, arranjam-se sinónimos, incorrendo na fúria de Milan Kundera(**), ou deixa-se passar, sabendo que o revisor, o editor ou o leitor irão ficar incomodados? E como decifrar aquele termo tão específico que só os especialistas conhecem? E, mesmo que o decifremos, usamos a tradução rigorosa, e pomos o leitor a caminho do dicionário, ou usamos uma palavra genérica e descansada para o leitor?
E depois há os jogos de palavras, as referências culturais, os prazos curtos, os problemas informáticos, a busca incessante dos termos mais correctos, o retocar infindável das frases em busca do rigor, da elegância e da voz do original.
Tudo isto para que, no final, meses depois, quando um livro a cheirar a novo nos chegar às mãos, lhe estalarmos receosos a lombada e vermos de imediato uma gralha, uma frase que poderia ter ficado melhor, um termo não completamente exacto, uma alteração do revisor com que não concordamos (e outra que nos exaspera por não termos sido nós a fazê-la) e o sentimento de suprema frustração que é não poder continuar a corrigir, a melhorar, a tentar encontrar a saída certa do labirinto das palavras.
É nisso que consiste a tradução, num infindável labirinto subterrâneo de escolha de caminhos, de ser a mão de alguém que pensou noutra língua e noutra cultura, de nos tentarmos orientar dentro de frases e parágrafos na busca do caminho mais rápido, mais seguro e mais directo até ao sol mais limpo. E mesmo que o resultado seja quase sempre uma desilusão, raro é que a viagem não valha a pena.
(*) Jorge Palinhos é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas e mestre em Terminologia e Tradução. Trabalhou como tradutor para várias editoras, como coordenador editorial e como gestor de conteúdos. Actualmente é tradutor freelance e consultor linguístico.
(**) Ver Os Testamentos Traídos (Edições ASA, 1993)