PEIXES GRANDES E PEIXES PEQUENOS,
por Maria do Rosário Pedreira (*)
Há vinte e dois anos, quando entrei para o (então) fascinante mundo dos livros, a edição era uma actividade bastante mais próxima do artesanato do que é hoje, não só na medida em que algumas coisas eram efectivamente feitas à mão (ainda me lembro dos caracteres a chumbo, por exemplo), mas também porque dava origem a verdadeiros «artefactos» no sentido original do termo, ou seja, de «objectos feitos com arte». O artista era, evidentemente, o Autor, em torno do qual tudo girava; e os catálogos das grandes editoras (que então se contavam pelos dedos de uma mão) faziam-se não com best-sellers, como acontece agora, mas com Autores, que eram seguidos e acompanhados ao longo de toda a sua vida literária.
Tendo a edição atingido, há alguns anos, o estatuto de indústria, passou a ser o leitor – visto hoje como «cliente» – o centro de toda a actividade e aquele que determina, através de modas e de um gosto mais ou menos globalizado, o que se publica em todo o mundo. Assim também, o livro deixou de ser o tal «objecto feito com arte», para se transformar num mero produto, igual a uma pasta dentífrica ou a um detergente. E, nesta voragem, o autor foi, de repente, reduzido a apenas mais uma peça da engrenagem, e – a menos que tenha a capacidade de se tornar rapidamente uma marca – raramente a mais importante; por isso, se for alguém conhecido do público tanto melhor e, não o sendo, chega a desejar-se que tenha atributos físicos que agradem às massas para, desse modo, as atrair para o que escreve. (Não, embora pareça, não estou a brincar: nas feiras internacionais do livro que visitamos todos os anos acontece mostrarem-nos fotografias dos autores das obras que nos querem vender dizendo que he – ou she – is very promotable.)
Os peixes graúdos, que são as grandes editoras, frequentemente obrigados a um crescimento de x% ao ano pelos grupos a que pertencem ou pela agressividade da concorrência, optaram nos últimos anos por apostar sobretudo em produtos de venda rápida, importando sucessos internacionais ou publicando livros de «pivôs» da televisão, alternadeiras, ex-inspectores da Judiciária e outras figuras mediáticas. Mas, apesar das fantásticas receitas que obtêm, o prazo de validade desses produtos é extremamente curto e a verdade é que, a breve trecho, os seus catálogos não serão mais do que um imenso vazio.
Cabe, pois, aos peixes pequenos a tarefa mais árdua (mas simultaneamente o privilégio) de construir as literaturas nacionais. Os escritores continuam a criar com qualidade em todo o mundo e é deles a palavra que atravessará os tempos e escreverá os sucessivos capítulos da história da literatura. Se ninguém tivesse publicado, suponhamos, as obras de Kafka – que, quando saíram pela primeira vez,venderam uns míseros 400 exemplares –, se ninguém tivesse publicado Dante ou Maquiavel – só para dar alguns exemplos –, hoje não poderíamos dizer que certas coisas são kafkianas, dantescas ou maquiavélicas. E muitas coisas são kafkianas, dantescas e maquiavélicas, incluindo no mundo da edição.
Julgo também não me enganar se disser que o Nobel nunca poderá vir a ser ganho por Fátima Lopes ou que, na história da literatura portuguesa, nunca viremos a ler, ainda que numa nota de rodapé, o nome de Carolina Salgado. E, se daqui a cinquenta anos a RTP se lembrar de repetir o polémico programa dos Grandes Portugueses, ainda estarão seguramente entre as primeiras figuras Camões e Pessoa, mas não me parece, com toda a boa-vontade, que surjam os nomes de Virgílio Castelo ou Moita Flores.
Deviam, por isso, os pequenos editores sentir-se orgulhosos da sua condição e trabalhar afincadamente naquilo que é realmente importante para empresas da cultura: descobrir novos autores de qualidade, orientá-los na edição dos seus textos e, apesar do enorme esforço necessário – sobretudo quando faltam os meios –, procurar internacionalizar o seu talento, porque toda a boa literatura (passe a redundância) não deve sair da gaveta se não for para pertencer ao mundo. Tudo isso dá, obviamente, trabalho, muito trabalho, mas também um nível de compensação pessoal e profissional que não é, seguramente, comparável ao conseguido com as gordas receitas que advêm da venda de centenas de títulos todos iguais.
O problema é que – tal como no Sermão de Santo António aos Peixes (desse outro grande autor que teria sido trágico deixar por publicar) – os peixes grandes comem os peixes pequenos nas águas de todo o mundo; e que, depois de um pequeno editor ter feito todo o trabalho duro que havia para fazer e ter, inclusivamente, corrido riscos financeiros por um autor que soube desde sempre que ia vingar mas não vingou logo (mesmo que ao terceiro livro tenha ganho todos os prémios que havia para ganhar), lá vem o grande editor acenar com os maços de notas ao autor e aliciá-lo para uma vida mais folgada, inteiramente dedicada àquilo que ele gosta realmente de fazer…
Ou seja: as pequenas editoras, preocupadas mais do que todas as outras com a questão cultural, vêem, de repente, voar pela janela um autor pelo qual e ao qual deram tudo (incluindo as asas) – mas um «tudo» que, pelos vistos, não foi suficiente. A situação é igual em todo o mundo e Portugal não há-de ser estranho a ela. É justo? De certeza que não. Mas das duas uma: ou as pequenas editoras se resignam a funcionar, a partir de agora, como meras rampas de lançamento – e os seus editores continuarão a dormir todas as noites de consciência tranquila e satisfeitos com o seu desempenho (mesmo sabendo que não serão eles a estar em Estocolmo quando o seu agora jovem autor estiver um dia a receber o maior prémio literário de sempre) –, ou simplesmente desistem – e muitos já desistiram, porque, diante da perda, a tentação é grande –, contribuindo também, com a sua ausência, para aquilo a que hoje se chama «a morte da literatura».
(*) Maria do Rosário Pedreira é editora e escritora. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, ingressou na carreira editorial em 1987, sendo actualmente editora da QuidNovi. É autora de livros de poesia, ficção e literatura infanto-juvenil.
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