segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Opinião: Chegar a casa aos dez, por Hugo Torres

CHEGAR A CASA AOS DEZ,
por Hugo Torres (*)

O exercício que um miúdo nado e criado na Póvoa de Varzim pode experienciar ao longo de dez anos de Correntes d’Escritas é de facto interessante. Em 2000, tinha uns 15 anos a meio caminho dos 16 e nenhuns – notem: absolutamente nenhuns – hábitos de leitura. Não pus os pés nessas Correntes e duvido até que estivesse a par do acontecimento. (A Póvoa é pequena mas tem becos, mas tem mar.)

Lembro-me perfeitamente naquela manhã de escola, no ano seguinte, em que nos levaram a ouvir o Rui Zink (este eu sabia quem era, da televisão) e o Mia Couto. Nunca mais este último nome me saiu da cabeça. Fiquei deslumbrado com aquele senhor que eu não tinha certeza se vinha de Angola, se de Moçambique, se faria sequer muita diferença.

Voltei a encontrá-lo em 2008, já tantos e tantos livros depois, a um sábado de manhã com auditório cheiíssimo. Teria acabado de lançar O Outro Pé da Sereia. E de novo o encantamento como se estivesse a encarar um qualquer deus do Olimpo, vá lá saber-se porquê. A minha biblioteca cresceu enormemente nesses anos (dos livros que comprei e tenho, dos livros que me emprestaram os amigos e as bibliotecas e devolvi).

Nos tempos académicos, muito se espantavam os que me viam fora das Correntes, a mim, um poveiro a quem viam dedicadamente ligado aos livros. Nas diversas edições ia a espaços a esta ou àquela mesa, porque sim ou com objectivo traçado. Crescemos ambos nesta separação de reencontros sumários, até que em 2009, aos dez anos disto, me senti tanto das Correntes quanto da Póvoa. E tenho para mim que a culpa é do Saramago.

Quase era levado a pensar que seria dessa biblioteca que prosperou e com ela o à-vontade perante essa gente das Letras, sabedora do pó dos livros e quejandos. Mas não. Olhava os escritores, seres iluminados, com reverência tal que as pernas tremiam e a mão fraquejava, falhava a voz. Até que o próprio e muito grande Saramago me mostrou a humanidade por detrás de cada um deles – o Nobel fez-se mesmo bloguer durante este ano, colocando-se tão próximo como os camaradas que escrevem sobre os dias em Lisboa, em Beijing.

Respirando, as Correntes são coisa menos taciturna – os livros, os livros, os livros. Sentar e olhar quem está nas mesas, à espera para intervir, calado, quase sem expressão. Gente que ainda não é mais que um nome e se transforma num bicho inesperado quando abre a boca para dizer. Ver o Ondjaki pular cadeiras e sorrir; sentir o coração quente vendo o Manuel Rui; a alegria de saber que o Onésimo está por ali. E, embora familiar, esta é gente com quem nunca troquei duas palavras (excepto a trabalho, com o primeiro).

Há também casos comparativos e imediatistas que as Correntes nos permitem como dificilmente acontecerá noutro lugar. Sentados à mesma mesa estavam o muito premiado Mário Cláudio, o galante e reconhecido Almeida Faria e a enérgica e frutuosa Alice Vieira. Nunca li uma linha de nenhum dos seus livros e nunca os tinha visto e ouvido em público. A serenidade com que encarava o facto para os dois primeiros era diametralmente oposta à urgência que passei a ter de Vieira, de lê-la, de ouvi-la, de a convidar para jantar e continuar a ouvi-la.

Como é que se pode jogar com isto na promoção dos livros, não tenho a mais pequena das ideias.

(*) Hugo Torres dirige o portal cultural
Rascunho, é co-autor do blogue Húmus e correspondente da revista espanhola Zona de Obras.
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