segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Rogério Moura no JL

Transcrevemos abaixo um artigo do JL de Maria Leonor Nunes, publicado a 12 de Junho de 2002, intitulado "Os três mosqueteiros - IRMÃOS MOURA"

«Os três mosqueteiros IRMÃOS MOURA «Já estou a ver qual vai ser o título» - alvitrou o irmão do meio. «Os três mosqueteiros da edição». Acertou. Não havia outro nome a dar-lhe. Assim eram ironicamente chamados pêlos seus pares os irmãos Moura, nas feiras e nos encontros de editores e livreiros A «boca» tinha razão de ser.

E que os três irmãos. Rui, Mário e Rogério seguiram separados juntos no mesmo ramo. Por outras palavras, são todos editores, porém cada um fez as suas casas, nunca foram sócios, nem trabalharam na mesma editora. Levaram à letra a prudente sentença popular: irmãos, irmãos, negócios à parte.

E, no entanto, são «três irmãos extremamente unidos», como sublinha Rogério Moura. O mais novo, 76 anos, que há quase meio século toca para a frente a Livros Horizonte. O mais velho. Rui Moura, SÓ anos, já retirado das lides, foi o criador que deu alma a uma das mais importantes editoras portuguesas da década de 60, a Prelo. E Mário Moura, 77 anos, hoje à frente da Pergaminho, depois de muitos anos no Brasil, como denuncia o sotaque carregado e a graça sempre à flor da fala, tem uma explicação para este caso de irmandade editorial. «Só posso admitir que, não sendo o nosso pai editor, tivéssemos ido os três para a prática editorial, que não é das mais comuns, nem das mais fáceis» - diz ele - «porque alguém rogou uma praga ao meu pai». Essa é uma das hipóteses, a outra prende-se com o facto de, ainda jovens, todos terem tido uma forte actividade cultural, que passou necessariamente por uma íntima convivência com os livros.

Ainda muito jovens, os três irmãos Moura, que então viviam em Campo de Ourique, fizeram renascer a Universidade Popular, uma biblioteca que estava abandonada, por força das contingências do fascismo: «Assumimos essa instituição cultural e chamámos as melhores pessoas da época, Keil do Amaral. Flauzino Torres, Bento de Jesus Caraça. Joel Serrão, para lá fazerem palestras.

E foi tão grande o sucesso que, ao fim de algum tempo, a Pide fechou a biblioteca».
Conseguiram, contudo, doá-la à Voz do Operário. E muitas das palestras lá proferidas foram depois transformadas em livro, na Biblioteca Cosmos. É o caso da célebre conferência A cultura integral do indivíduo, de Bento de Jesus Caraça. «Através desse nosso envolvimento percebemos também como a cultura se transformava em livro» - adianta Mário. Essa foi uma das razões por que, mais tarde, acabaram a fazer livros. Porque não havia antecedentes familiares. «Não tínhamos o papá» - acrescenta Rogério. O pai era comerciante. «Fazia coisas mais gostosas, pastéis de nata...» - esclarece Mário. «Tinha uma pastelaria, muito elegante no Chiado, uma casa de chás e cafés». Mas a verdade é que nem só de doces o pai Moura lhes lambuzou a infância. Porque ele era um «leitor viciado».

«Sabia tudo da História de Portugal, de França... Essa geração comprava e lia muitos livros. E discutia-os. Isso perdeu-se» - sublinha Rogério. «Dantes, um livro, um filme, uma exposição, davam pano para mangas.

Hoje, publicam-se 20 livros por dia, em Portugal, mas não se discute nada».

É sempre difícil saber o que decide um destino, mas é de arriscar que no caso dos irmãos Moura contou a reserva de amor às letras impressas que engrossaram da casa paterna aos movimentos culturais de bairro passando pelo campismo, prática de que foram pioneiros. «Era uma maneira de nos encontrarmos e discutirmos, já que não o podíamos fazer de outra maneira» - adianta Rogério. Desse grupo de campistas fazia parte, curiosamente, Francisco Lyon de Castro. «Foi uma época muito boa culturalmente, em Portugal. E editou-se bem. As edições da Cosmos ou da Inquérito foram importantíssimas para nós» - recorda Mário. E Rogério acrescenta: «E havia a Seara Nova, a Vértice, que tiveram uma grande importância na nossa formação. Dá-me a impressão que então os livros eram melhor tratados nos jornais do que agora».

Cedo começaram, de resto, a pagar a factura do seu interesse cultural. Um inocente encontro em casa dos pais para lerem e discutirem um livro chamado Civilização, tronco de escravos acabou na prisão. «Tínhamos 15 anos e não sabíamos nada de política ou de partidos. Estávamos a ler, veio a Pide e levou todo o mundo preso» - recorda Mário, que seria detido outra vez por ter organizado uma sessão de cineclube, com um filme considerado subversivo. Putos e Homens, no Politeama: «Mais tarde, teríamos responsabilidades políticas e digamos que teriam razões para nos prenderem. Mas nessa altura, éramos apenas crianças deslumbradas com o poder da Cultura» - sublinha. E Rogério salienta, por seu lado, que com o fim da Segunda Guerra «a esperança de haver uma modificação em Portugal despertou muito a juventude». E Mário remata: «Isto era um pântano e sabíamos que Portugal só tinha solução pela Cultura. Eu organizava recitais de poesia no Barreiro, em Almada, com Maria Barroso a recitar Lorca e havia três mil pessoas a ouvir. E ficavam com as lágrimas nos olhos. Havia uma ânsia de saber tudo. Porque era tudo proibido, três pessoas numa esquina a conversarem já era suspeito». Rogério volta à carga: «Diziase por graça que eram proibidos ajuntamentos com mais de uma pessoa. Mas houve um despertar de consciências e tudo isso marcou depois a nossa actividade profissional». E porque a conversa desatava a língua e as lembranças, veio o reparo do editor: «Pena que em Portugal se publiquem poucas memórias e biografias. É importante sabermos como era o pais. Daqui a 20 anos, já ninguém se lembra. Não bastam os monumentos, há uma memória colectiva, de identidade, que faz falta se não ficar escrita».

LINHA POLÍTICA

Leitor muito atento e critico. Rui Moura aprendeu «à sua custa», como faz notar o irmão Rogério, e sedimentou uma profunda formação histórica e política. Autodidacta, também aprendeu sozinho a ler e escrever francês e inglês.
Dedicou-se, ainda muito novo, à tradução, sobretudo de obras sociais e históricas. «Tem um mérito extraordinário, é uma pessoa muito qualificada culturalmente. Tenho por ele um enorme apreço» - prossegue ainda Rogério, secundado por Mário. À actividade cultural, ele juntava uma empenhada militância política, antifascista. Esteve preso três vezes, a última das quais integrado no chamado caso da prisão dos economistas, com Guilherme Nascimento, Sá da Costa, Costa Leal e outros.

Depois de ter saído da prisão, Rui Moura fundou a Prelo, em 1960, sobretudo com o intuito de divulgar a cultura: «Sempre tive essa mania» - confessa.
Matai-vos uns aos outros, de Jorge Reis, que havia ganho o Prémio Camilo Castelo Branco, foi o primeiro livro que publicou.

«Tínhamos uma colecção de ficção portuguesa e lançámos muitos novos autores, hoje conhecidos» - recorda. Irene Lisboa, Maria Judite Carvalho, Modesto Navarro, foram autores da casa. «Também tínhamos uma boa colecção de economia e publicámos vários livros políticos, pelo que tivemos muitos problemas com a censura. Só conseguíamos vender esses livros nos primeiros dias, antes de serem apreendidos pela Pide».
Mais tarde, a Prelo tomar-se-ia sociedade anónima, com a entrada de Sérgio Ribeiro ou Carlos Carvalhas, e lançou uma colecção de economia. Uma colecção técnica, com temas de fotografia e cinema, compensava os prejuízos de outras. Em 20 anos, a Prelo editou 300 livros. Entre eles, uma edição de Pantagruel. ilustrada por Júlio Pomar, que Rui Moura gostou particularmente, tal como Teatro Português, de Luiz Francisco Rebello, que aliás paginou, porque o editor também tinha artes gráficas e fazia a revisão. E, sobretudo, ele gostava de contactar com os autores. Fez, de resto, muitos amigos.

Em 1975, Rui Moura fundaria as Edições Sociais, com uma linha editorial muito politizada, para «acompanhar os tempos da Revolução». Publicou os militares de Abril e outros livros sociais, aqueles que preferia fazer. E depois lançaria a Politécnica, uma editora escolar, que dirigiu até se reformar.

Concluído o curso de Agronomia, Mário Moura, que era da comissão central do MUD Juvenil, foi forçado a sair do pais, por razões políticas. Foi para a Venezuela e dai para o Brasil, onde começou por ganhar a vida como tradutor, nomeadamente de telegramas noticiosos, no Correio da Manhã e outros jornais. Fundou então a primeira editora, a que chamou Andes. Era o tempo da guerra da Coreia e entendeu que não havia informação suficiente sobre o assunto. Pegou em dois artigos, de um americano e de um belga, juntou-os em livro sob o titulo A verdade sobre a Guerra du Coreia. «Dei voltas para fazer o prefácio, até que me lembrei de um texto de Eça de Queirós sobre a Coreia. O incrível é que ele explicava 60 anos antes as causas daquela guerra. Publiquei-o como prefácio e esse meu primeiro livro foi um estouro» - recorda. Lançaria outras obras de política internacional, igualmente bem recebidas.
Criou outra editora chamada Páginas, com colecções de Teatro e Cinema e, mais tarde, a Fundo de Cultura, que lançaria uma média de centena e meia de livros por ano.
PROFISSÃO CRIATIVA Quanto a Rogério Moura, seguiu a via histórico-fílosófica, mas fez, paralelamente, um curso de História de Arte. Aprendeu muito com João Couto, então director do Museu Nacional de Arte antiga, e teve um mestre em Mário Chicó. «Ele não tinha carro e eu ia com ele para Évora, onde estava a montar o museu.
O caminho era um gozo, uma lição» recorda. «Tive muita sorte, porque convivi com pessoas como o João Santos ou o Rui Grácio». Não foi por acaso que se tomaria essencialmente um «editor de autores portugueses». E, entre meio milhar que já publicou, constam nomes como Joel Serrão, Vítor Sá, Oliveira Marques, Orlando Ribeiro, José-Augusto França. «Tive o privilégio de publicar muitos autores de respeito. Isso dá-me um gozo danado. E aprendo sempre» confessa.

Os Livros Horizonte têm hoje um catálogo vivo de um milhar de títulos, publicando em média meia centena de novos livros por ano.

A editora nasceu em 1953, quando Rogério Moura era representante em Portugal da Fundação Getúlio Vargas e já andava ligado à edição com o Dicionário Morais, de que é proprietário, e com a editora Confluência, que havia comprado. Começou com três livros, Parto sem dor. então na berra. Historia do Cinema, de Georges Sadoul, e Vocabulário de Filosofia, que ainda vendem. Depois, vieram os livros de arte. os azulejos, os românicos, os góticos. E os dicionários, entre os quais, o Etimológico, de José Pedro Machado.

A História e a Arte são as meninas dos olhos de Rogério Moura. Publicou a primeira História de Arte em Portugal, de Reinaldo dos Santos, tal como a colecção Horizonte, com temas da História de Portugal. O seu entendimento da função do editor passa pela capacidade de encomendar uma obra. «O mais aliciante para mim » - explica - «é ter uma 'ideia, imaginar um projecto e convidar uma série de autores para o concretizarem. Porque é uma profissão criativa». Ele desafiou, por exemplo, José-Augusto França para fazer um livro sobre a carreira 28 ou. mais recentemente, sobre a Rua Monte Olivete. Orgulha-se, aliás, da sua colecção sobre Lisboa, que já conta com dezenas de títulos. «O editor tem que procurar o autor e não apenas recebê-lo e ler os textos». E lê-os todos. Já publicou perto de dois mil livros e, mesmo que não perceba nada da matéria, não consegue editar um que seja sem o ler primeiro. E, curiosamente, só lê os originais, nunca os livros já prontos. A sua aposta editorial é na «vertente cultural», mas reconhece que pode ser uma aposta no cavalo errado, porque nem sempre é rentável e as pessoas estão pouco sensibilizadas para determinadas leituras.

Mário Moura está, por seu lado. mais atento ao mercado e às suas lacunas: «Sempre achei que o editor tem que ver o que não se edita para ver se é possível e útil fa/ê-lo».

Foi assim que, ao criar a editora Fundo de Cultura, optou por fazer livros para as universidades brasileiras, na altura cm que a economia do Brasil estava a «despontar». A imagem da Prcssc Universitaire. editou Sociologia, Psicanálise. Estatística, Análise Matemática. «Tive a sorte de participar na campanha básica de Kubitchek e intui que o Brasil iria explodir e que esses livros seriam fundamentais para o desenvolvimento»--justifica. Editou 1800 títulos de diferentes correntes e tendências políticas: «Como editor, não tenho partido político, faço livros para o mercado». A Fundo de Cultura durou 25 anos e foi um caso de sucesso no panorama editorial brasileiro. Muitos estudantes portugueses, durante o fascismo, estudaram também por esses livros, já que só depois do 25 de Abril foram editados no nosso pais.

EDITOR COMERCIAL
De regresso a Portugal, no final dos anos 80, Mário Moura jurou a Rogério que não se iria meter na edição: «Disse-lhe: livros em Portugal, nem fales disso comigo». Abriu uma agência de viagens, juntando o útil ao agradável, porque gosta de viajar e é um negócio certo, na medida em que o cliente paga antes. É dinheiro em caixa, ao passo que na edição é preciso esperar muito tempo para reaver o capita] investido. Mesmo assim, acabou por quebrar a jura. Em 1991. fundou a Pergaminho, para fazer dois ou três livros por ano. Um deles foi de Paulo Coelho, que vendeu cinco exemplares na Feira do Livro e levou dois anos a esgotar a edição. Hoje, já vai num milhão de exemplares vendidos. Em 1996, Mário Moura trocou definitivamente o negócio certo pelo incerto: «Pensei que estava no final da vida, porque havia de estar a fazer coisas de que não gostava. Mesmo que não ganhe dinheiro, não interessa, não quero imóveis, nem carros do ano». Dedicouse de novo exclusivamente ao livro e para isso contou com a ajuda do irmão Rogério. Assume-se, porém, como um editor comercial: «Achei que através de uma linha muito comercial, na área de auto-ajuda, do esotérico, podia criar condições para fazer aquilo de que gostava. Por exemplo, tenho uma colecção de escrita criativa, única em Portugal, na qual publico dois livros por ano, sabendo que não vão vender». Rogério resume numa palavra: «É realista».

Certo é que Mário Moura não se tem dado mal com a sua opção editorial. A Pergaminho edita 90 novos títulos e faz mais de uma centena de reedições por ano. «Não importa perguntar a um editor quanto edita, mas sim quanto reedita, porque ele só ganha na reedição» - adianta. Ele faz questão de sublinhar que em Portugal existem «editores magníficos». O problema da edição, no nosso país, prende-se sobretudo com a distribuição e a insuficiência de livrarias. É que, como salienta, sustentando-se nos números: «Temos duas centenas de editoras que lançam 10 mil títulos por ano no mercado c apenas umas 400 livrarias. Não funciona, é preciso criar outros canais de distribuição». E. antes de tudo, «aliciar as pessoas a lerem»: «Temos mesmo que viciá-las. Para mim. ó impossível pensar entrar num avião, num hotel, na casa de banho, sem um livro. É o Estado que deve comprar livros para oferecer às crianças, tal como acontece no Brasil, em que o Estado é o balão de oxigénio da edição». Rogério Moura preferia que o Governo investisse muito nas livrarias. «Não basta ter uma rede de bibliotecas. Apesar de termos livreiros de bom gosto e de boa vontade, falta uma rede de livrarias. Os editores vão-se safando, mas precisamos de livrarias bem apetrechadas, até porque começa a haver uma maior apetência pêlos livros, pela Cultura, embora resulte fundamentalmente da carolice de algumas pessoas».

UMA LOTARIA
Sinais de esperança que todavia não impedem um prognóstico reservado. «O mercado está mau, porque o livro é caro e as tiragens baixaram drasticamente» - argumenta ainda Rogério Moura. «Quando comecei há 49 anos, a tiragem mínima que fazíamos era de 3.500 exemplares e, hoje. há editores que não fazem mais de mil exemplares. Se o livro pega. faz-se então uma nova edição, o que é rápido com as novas tecnologias. Mas tudo isso influencia muito o preço do livro». Uma edição maior ó sempre um risco. E nem sempre petisca quem muito arrisca. Tanto mais que. como diz Rogério Moura, um livro não vive mais de 20 dias numa livraria. De bons livros estão muitos armazéns cheios. «A profissão de editor é excelente, mas temos dois grandes problemas» - afirma Mário - «O primeiro. quando vai ao armazém e vê todos os projectos fabulosos que teve. todas as esperanças empilhadas. O segundo, quando vai às feiras internacionais e se sente insignificante. porque vê lá milhares de livros que gostaria de editar. E a grande frustração».

Editar um livro é sempre uma «lotaria». Quando há meia dúzia de anos, Rogério Moura publicou. por exemplo, A Teoria geral da estupidez humana, teve algumas dúvidas e receios. Porém, já vai na sétima edição, com cerca de dez mil exemplares vendidos. Outros livros que pareciam favas contadas acabam por ser inexplicáveis fracassos. «Só com bola de cristal» - observa Mário. «Mas se a tivéssemos era idiota sermos editores. Ganhávamos mais com um turbante...».

Apesar da imprevisibilidade, dos infortúnios, das dificuldades do mercado, a profissão de editor é daquelas, conforme assevera Rogério, em que depois de entrar nela, o difícil é sair. Porque é mais forte o entusiasmo posto em cada projecto e o afecto investido na feitura de cada livro, da ideia inicial à escolha da capa, passando pela paginação ou pela escolha das estampas: «Não imprimo nenhum livro sem ver a última prova. É isso que me dá prazer» - diz Rogério. O primeiro livro que editou ainda foi composto manualmente. letra a letra. E gosta de assistir até à impressão dos livros de arte. «É esse o quê de editor, acompanhar todo o processo de produção. e não apenas assinar papéis e fazer uma boa gestão» - acrescenta. E dos quês da edição sabem os irmãos Moura, que ao todo somam mais de um século e meio de experiência e cinco mil livros publicados, na folha de serviços.»