Osvaldo Silvestre, no Os Livros ardem mal, comenta a capa da Ler de Julho, com Margarida Rebelo Pinto:
«(i) O que se depreende das capas destes 3 primeiros números é que estava fora de causa não dar a capa dos dois primeiros números a Lobo Antunes e Saramago, os gémeos siameses da nossa literatura actual (o Nobel e o ainda-não, o sereno e o ressabiado, o Narciso e o Narciso). Uma literatura, enquanto fenómeno social, necessita destas personagens que conciliam crítica e mercado. E isso significa, claro, que tais personagens só existem no domínio da categoria da «ficção», já que nenhum poeta pode funcionar de igual modo em ambos os campos.
(ii) Esgotados os gémeos, percebe-se agora, é um mundo de possibilidades que se abre. Haverá quem lamente não ter sido Agustina (suponho que razões de saúde impediam essa escolha), mas creio que a alternativa real não seria tanto Agustina - ou Mário Cláudio ou Lídia Jorge ou mesmo Manuel Alegre - e sim o batalhão pós-colonial: Agualusa, Mia Couto, o «jovem prodígio» Ondjaki, em menor grau Pepetela. Em todo o caso, insista-se, e no plano em que esta discussão tem alguma relevância para uma sociologia do fenómeno literário, passar dos dois primeiros para MRP significa apenas que, desde que esses dois estejam assegurados, não há escândalo com qualquer das escolhas posteriores, uma vez que nenhuma delas é evidente. Falta a todas o peso simbólico e de mercado que as torne o indiscutível nº 3 na sequência de capas de uma revista com o perfil da LER (e que, para esse perfil, diga-se, está uma publicação decente). Ou seja: qualquer das opções é deficitária numa dessas áreas. Como sucede com MRP, autora sem qualquer tipo de caução crítica, de que aliás não necessitaria, mas cuja entrevista revela toda uma estranha patologia quando confrontada justamente com a crítica (a de João Pedro George, sobre a prática da autocitação pela autora). Talvez essa reacção à flor da pele demonstre que, ao contrário do que a revista proclama na capa, numa legitimação da sua opção, escrever «os livros das pessoas comuns» não é suficiente para alguém que deseja ser cada vez mais autora e entende que, enfim, está a escrever livros «à séria». Pode ser suficiente para Paulo Coelho, não parece sê-lo de todo para MRP - o que não augura nada de bom para a autora, diga-se.
(iii) Não sei, nem me interessa, se MRP já não vende o que vendeu - e se, ao dar-lhe a capa para atrair «as pessoas comuns», a LER não errou o alvo (ou se não o errou mais do que se erra quando se crê na existência de «pessoas comuns»). O que me surpreende é que quando se deseja atingir esses leitores se recorra, quase que pavlovianamente, à literatura light - e não, por exemplo, a Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada. Tenho dificuldade em diferenciar radicalmente os fenómenos de mercado em causa; e é para mim evidente que a renitência em colocar esta dupla de autoras no mesmo escalão literário de MRP se deve apenas à chantagem de um imaginário pedagógico que ressalva, na literatura infantil, o industrial em função dos «valores educativos». Numa altura em que a literatura infantil é o óbvio motor do mercado do livro, a invisibilidade do mercado na crítica da escrita de autoras como as duas que proponho é uma bondade que se dispensa. E é tempo, aliás, de boa parte do volume crítico endereçado às inanidades da literatura light - estranhamente emancipatórias, porém, ou não morasse aí boa parte do contingente de autoras-mulheres da nossa literatura actual, com todas as consequências «temáticas» que isso arrasta - se deslocar para as inanidades da literatura infantil industrial - também ela, diga-se, entregue em grande medida às bondades da emancipação feminina. Sob pena de desprotegermos essas «pessoas incomuns» que são as crianças leitoras, cada vez submetidas mais prematuramente a uma propedêutica do mercado, via literatura infantil (designação cada vez mais imprópria para a coisa em pauta) ou canais de TV a elas dedicados.»