A obra «O papel e o Pixel», de José Afonso Furtado, será apresentada na Casa Fernando Pessoa, no dia 27 de Novembro (terça-feira) pelas 18h30.
A apresentação do livro estará a cargo de João Caraça.
O livro «O Papel e o Pixel» foi publicado inicialmente no Brasil, posteriormente em Espanha e só agora em Portugal. Quer explicar-nos este percurso?
Em Novembro de 2004 participei, como conferencista convidado, no I Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial, promovido pela Fundação Casa de Rui Barbosa e Universidade Federal Fluminense. Os temas que então abordei despertaram o interesse de Dorothée de Bruchard que me propôs a edição de uma obra de maior fôlego na editora de que é responsável, a Escritório do Livro. Como tinha vindo, desde o início de 2003, a acumular material e reflexões sobre esta questão (designadamente para um texto com que participei no projecto Ciberscópio, coordenado por Maria Manuel Borges, e para um artigo publicado na revista Românica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), aceitei o desafio e concluí a obra ao fim de cerca de um ano de trabalho adicional. Ela foi publicada no Brasil no primeiro trimestre de 2006 e constitui, desse modo, a edição original. Nessa altura, estava convicto da sua rápida publicação entre nós, já então na Ariadne, mas problemas no seu funcionamento ocasionaram sucessivos adiamentos. Entretanto, alguns exemplares da edição brasileira foram circulando em Portugal, o que terá contribuído para uma proposta das Ediciones Trea para a sua tradução em Espanha, onde foi editado há meia dúzia de meses. Retomada agora a actividade da Ariadne, surge finalmente a edição no nosso País.
Quais as grandes diferenças entre as três edições da obra?
A edição brasileira corresponde ao texto original, mas com as particularidades resultantes da decisão de o adaptar à variante brasileira da língua. Esse trabalho foi lento e muito rigoroso e beneficiou da muita experiência de Dorothée de Bruchard, que é também uma reputada tradutora, e do Professor Walter Carlos Costa da Universidade de Santa Catarina. Tratou-se quase de uma experiência de close reading, pois envolveu, para além da natural preocupação com a terminologia (por exemplo, no Brasil dificilmente alguém entenderá o conceito de «literacia» pois a literatura especializada usa o termo «letramento»), uma cuidadosa atenção às nuances e conotações próprias da língua de chegada. Já a tradução para castelhano foi feita a partir do meu texto inicial, revisto e actualizado no final de 2006 e início deste ano. É essa versão que a edição portuguesa segue, no essencial.
De que forma se articula a sua carreira como docente na Pós-Graduação da Universidade Católica (onde lecciona a cadeira "O livro e Edição na Era Digital"), com esta obra? E, já agora, com o cargo de director da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian?
De um modo muito harmonioso e produtivo. O facto de ter assegurado cadeiras sobre temas da edição desde 1994 (fui docente do Curso de Especialização para Técnicos Editoriais da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa entre essa data e 2002), impõe-me uma disciplina, uma focalização e uma permanente actualização sobre os diversos aspectos do mercado do livro que, destinando-se num primeiro momento às aulas, acabam muitas vezes por vir a ser desenvolvidos e aprofundados, integrando outras preocupações de índole mais «ambiental» (que não caberiam nos objectivos de uma cadeira) e gerar artigos, conferências e, ocasionalmente, livros como este. Por outro lado, a especificidade destes Cursos de Especialização ou de Pós-Graduação possibilita uma interacção muito viva com os alunos, alguns deles com larga experiência no campo da edição, que é para mim muito estimulante e enriquecedora.
No que se refere às minhas responsabilidades à frente da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian as relações são ainda mais óbvias, quer com a actividade de leccionação quer com a escrita sobre estas matérias. Na verdade, as bibliotecas fazem parte da cadeia tradicional do edição e enfrentam hoje, igualmente, os desafios do paradigma digital emergente, desafios por vezes muito próximos daqueles dos agentes da edição (por exemplo, as opções a tomar na digitalização das colecções de um biblioteca ou da backlist de um editora não são muito diferentes) e, mais ainda, sendo um polo final da cadeia de abastecimento, têm que gerir situações muito complexas geradas pelas estratégias de gestão de conteúdos digitais por parte dos grupos editoriais (pense-se na chamada «crise dos periódicos» na área da edição STM, por exemplo). Por fim, em muitas situações as bibliotecas têm vindo a desenvolver actividades I&D antes dos próprios editores: questões como a integração de recursos electrónicos de informação nos seus catálogos, de formatos e de standards para a migração digital, de compatibilidade e interoperabilidade, de disponibilização e acesso dos seus recursos em qualquer suporte, de preservação e recuperação perene dos ficheiros digitais, mas perene também no sentido da localização fiável dos documentos ao longo do tempo, de recommender systems, de utilização de alguns mecanismos da chamada Web 2.0, fazem hoje parte do quotidiano de qualquer biblioteca que mereça esse nome.
Como vê a edição digital do ponto de vista do negócio editorial: uma oportunidade ou uma ameaça?
As mudanças que atingem neste momento o negócio da edição, pela sua dimensão, acarretam necessariamente oportunidades e ameaças; mas sobretudo desafios, que serão tanto melhor compreendidos se evitarmos fórmulas feitas, simplificações redutoras ou as prioridades da agenda mediática. Neste mesmo momento, somos mais uma vez dominados pela questão dos dispositivos de leitura electrónica (ebooks, readers, etc.) com as novas versões do Iliad iRex, do Sony Reader, com o lançamento do Bookeen e com a entrada da Amazon neste mercado com o Kindle. Há dez anos sucedeu algo de muito semelhante, com o aparecimento do Rocket eBook, do SoftBook Reader, do Franklin eBookMan, entre outros. Ora, isto não é mais do que a «espuma» da questão da edição na era digital. Antes de se analisar a questão da distribuição electrónica de conteúdos, é aconselhável trabalhar num quadro conceptual e analítico muito mais alargado, no qual gostaria de referir três pontos. Em primeiro lugar, devem distinguir-se pelo menos quatro níveis diferentes no que diz respeito ao impacte da digitalização na indústria da edição: o nível dos sistemas de operação; o nível da gestão e manipulação do conteúdo (a progressiva emergência do digital workflow); o nível do marketing e serviços e, por fim, o nível da distribuição de conteúdo. Se é certo que este último nível é aquele em que o impacte da tecnologias digitais na indústria da edição é potencialmente mais profundo (a disponibilização do conteúdo directamente ao consumidor final em rede e de modo electrónico e não sob a forma de um objecto físico, irá transformar todo o modelo financeiro da edição), é forçoso reconhecer que as tentativas de estabelecer um modelo de negócio com base na distribuição de activos digitais têm sido muito diversificadas e normalmente sem sucesso estabilizado. Mike Shatzkin tem vindo a referir-se à necessidade de consolidação, na cadeia de valor, de «digital asset distributors» (DAD's), mas a situação neste domínio é por enquanto pouco clara. Verificamos assim que, se estes quatro pontos remetem para uma revolução no produto, talvez neste momento predomine antes uma revolução no processo, aquilo a que John B. Thompson chama The Hidden Revolution, o que significa que em vez do previsto ou anunciado brave new world totalmente integrado dos circuitos digitais dos profetas dos e-books, o que parece estar a ocorrer é uma revolução nas práticas do office e do back-office, algo que a computarização trouxe para todas as indústrias baseadas na informação.
Em segundo lugar, é necessário compreender que a indústria da edição é um domínio enormemente complexo e variado. Existem muitos tipos de edição, diversos produtos e mercados, não tendo grande sentido tratá-los como um todo. Por isso devemos desagregar a noção genérica de «indústria da edição de livros». Se trabalharmos a partir do conceito de campo (na sequência de Bourdieu), o mundo da edição de livros pode ser conceptualizado como um conjunto de campos editoriais, cada um com as suas características e dinâmicas próprias. E o que os distingue é o tipo de conteúdo produzido no seu interior e o tipo de mercado para que é produzido, em conjunto com as relações de associação, tipos de marketing e formas de reconhecimento. Uma das formas de entender os campos é assim uma apurada segmentação do mercado. E se o fizermos, verifica-se que existem certas formas de conteúdo que são mais adequados ao ambiente digital, seja pelo seu carácter mais granular e por integrar rapidamente as mais-valias funcionais características desse ambiente, seja pelos modos como esse conteúdo é normalmente apropriado e usado. Ao invés, há outras formas de conteúdo em que se verifica um incerteza efectiva sobre a sua adequação à distribuição e utilização online. Assim, as tecnologias digitais, embora irrenunciáveis para o futuro da edição, afectam os seus elementos – relação com o consumidor, natureza do produto e o modelo de negócio - de modos diferentes e a velocidades diferentes.
Por fim, em meu entender, constituiria um erro enfatizar a edição digital como um domínio separado pois, como refere Anne Galligan, a edição electrónica, a fim de procurar estabelecer estruturas comerciais lucrativas, tem vindo a desenvolver uma relação simbiótica com a indústria tradicional. Dir-se-ia que se tem seguido uma estratégia para posicionar o livro electrónico como um artefacto cultural digital no interior da cultura consolidada do livro impresso, onde procura estabelecer-se lentamente como um nicho de mercado. Isso não impede que nos encontremos numa fase de transição complexa, que passa pela necessidade de repensar, se não de reinventar, o próprio business.
sexta-feira, 23 de novembro de 2007
Entrevista: José Afonso Furtado, autor do livro «O Papel e o Pixel»
Postado por Booktailors - Consultores Editoriais às 14:27
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