terça-feira, 30 de outubro de 2007

Indústrias Culturais, por José Afonso Furtado

Para quem espera a continuação do Edição em Desassossego, a mesma aparecerá da parte da tarde.

Entretanto, e porque de facto merece a pena ser lido, deixo-vos o texto que José Afonso Furtado leu no lançamento do livro Indústrias Culturais - Imagens, Valores e Consumos, de Rogério Santos - oriundo do blogue homónimo -, e publicado pelas Edições 70.

«Como a intervenção é curta, seleccionei dois pontos que gostaria de referir.

O primeiro tem a ver com os blogues em geral e o Indústrias Culturais em particular, já que a quase totalidade dos temas, textos e imagens agora recolhidos na obra tiveram a sua origem naquele blogue.

Chris Anderson, escreveu em Maio de 2005 no seu blogue The Long Tail, que a primeira regra da blogosfera é evitar generalizações sobre os blogues, com o que pretende significar que é inútil tentar transformar os blogues numa instituição como o jornalismo, por exemplo, pois eles são muito diversos em termos de conteúdo, qualidade, ambição e sensatez. E se o seu modelo óbvio de configuração formal é o diário, ele pode ser íntimo ou intelectual, mundano ou cultural, pois os blogues resultam de diferentes motivações sociais e são, basicamente, individuais. Apesar disso, Rebecca Blood refere que a maioria dos blogues seguem ainda hoje o seu formato inicial, apresentando links para zonas da web ou para artigos e notícias consideradas relevantes, quase sempre acompanhados por curtos comentários. Contudo, o crescimento exponencial da blogosfera veio questionar esse formato, pois os blogues tornaram-se tão numerosos quanto difíceis de navegar e tão confusos como a própria web para o utilizador pouco experimentado.

Desse modo, a par do estilo «links e comentários pessoais», os blogues têm vindo a aproximar-se do modelo «website regularmente actualizado com novos posts no início da página», o que não deixará de ter relação com o facto de profissionais e investigadores usarem agora os blogues para reflectirem sobre o seu trabalho, para acompanharem os desenvolvimentos no seu campo e para publicarem ou testarem as suas ideias. Os blogues são assim profundamente maleáveis como são inúmeras as formas que podem assumir, muito embora quase todos privilegiem a divulgação de informação e a interacção com uma comunidade de interesses. Acrescente-se aliás que o seu sucesso depende em grande medida da qualidade e da relevância dos seus conteúdos para essa comunidade.

Posto isto, como caracterizar o «Indústrias Culturais»? Tendo começado por assumir um aspecto pedagógico de suplemento das aulas do seu criador, centrado essencialmente na genealogia e teorização do conceito de indústrias culturais e de indústrias criativas, rapidamente as características do meio e as idiosincrasias do blogueiro, levaram a uma verdadeira «explosão» temática. Encontramos assim num só blogue uma diversidade de formatos, correlato da multiplicidade de interesses do seu responsável, e que oscilam, nas suas próprias palavras, entre dois polos: «a perspectiva clássica da academia em termos de reflexão» e «o trabalho jornalístico de abordar os temas agendados e de actualidade».

Cremos que a importância, a originalidade e o sucesso deste blogue têm a ver com as suas sólidas reflexões teóricas, por vezes próximas do modelo «Thinking by Writing», com o seu papel de filtro e de organizador de agenda (o termo é de Jose Luis Orihuela) - resenhas, notas de leitura, análises e sugestões -, com a sua atenção aos acontecimentos nas áreas das artes e espectáculos e à agenda mediática e, certamente, com a exuberante diversidade das suas «obsessões». Rogério Santos pertence claramente à categoria dos consumidores insaciáveis (omnívoros) segundo o modelo de Jordi Lopez e Ercília García, modelo que ele analisa detidamente, o que aliás me permitiu conhecer o seu interesse pela zarzuela!

Por outro lado, algumas vezes o blogue transforma-se em metablogue e o blogueiro em teórico da blogosfera. Numa desses momentos (22 de Abril de 2005), Rogério Santos faz uma chamada de atenção para a absoluta necessidade de um mínimo de regras de conduta, num momento em que se assiste a uma progressiva mercantilização da blogosfera, a uma expansão do que chama blogues de entretenimento e em que muitas vezes se verificam casos de «cibervandalismo». Gostaria de enfatizar a importância desta questão da ética na blogosfera, porventura decisiva para a sua credibilidade e sobrevivência a prazo. Mas, sobretudo, Rogério Santos manifesta uma constante atenção, disponibilidade e generosidade em relação a tudo o que de novo vai surgindo: reflexões de alunos, teses de mestrados, jovens blogueiros, novos criadores, primeiras obras … o que não deixará de contribuir para um efeito de rede, para a criação de novas formas de sociabilidade e de comunicação interpessoal.

O segundo ponto que gostaria de referir muito brevemente é o da relação entre blogues e livros. Chris Chesher refere que o autor, que muitos deram como ameaçado pelas características da escrita e do texto digital, afinal está vivo, encontra-se bem e tem um blogue. Blogue que de algum modo o perpetua, que com ele coexiste mas que também o transforma. Na verdade, os escritores lidam nesse ambiente com condições materiais dos textos muito diferentes das tradicionais. Os blogues não são livros: os livros são produzidos, distribuídos, promovidos e chegam ao consumidor através de pontos de venda comerciais (simplifico, naturalmente). Os blogues são criados por um indivíduo ou por um pequeno grupo, acessíveis com facilidade e distribuídos electronicamente quase sem custos. Por outro lado, os blogues operam numa ordem temporal muito diferente. Se os livros têm uma data de publicação (que apõe um selo ao seu conteúdo), os blogues lêem-se como uma espécie de narrativa em episódios e por ordem inversa. Mais ainda, se os textos de um livro são cuidadosamente organizados, formalmente expressos, completos e internamente consistentes, os blogues apresentam com frequência primeiros drafts, são coloquiais, familiares e fragmentários, e podem ter o imediato feedback dos seus leitores. Há uma autoria nos blogues, mas ela não se correlaciona com os mesmos campos sociais da autoria no impresso.

Nada que Rogério Santos não saiba. Como ele afirma, entre a edição na internet e a escrita em papel alteram-se os ritmos, os alcances de leitura, a organização de materiais e mesmo os próprios materiais. Acresce que «o livro em papel é ponto de chegada, sujeito apenas ao crivo crítico posterior dos seus leitores», enquanto «a internet é continuamente ponto de partida e ponto de chegada, aceitando a rasura, o retomar de um assunto como se fosse um diário ou uma conversa». Ou seja, como conclui lapidarmente, «o blogue é mais aberto que o livro, o livro é mais espesso que o blogue».

Não cabe aqui estabelecer hierarquias, pois a aparente debilidade de um blogue – o carácter efémero de muita informação – tem como contrapartida o seu dinamismo, facilidade de inserção de informação e reacção à leitura quase em tempo real, características que as novas ferramentas da chamada Web 2.0 vêm facilitar e expandir. Mas também porque, na terminologia de Eliseo Veron, com os blogues estabelece-se um novo «contrato de leitura», que pouco tem a ver com o posicionamento discursivo de outros media mais tradicionais.

Em conclusão, se a frequência do blogue de Rogério Santos é uma exigência para quem se interessa ou trabalha no campo das indústrias culturais, temos a partir de hoje acesso a um livro que com ele se não confunde, porventura a espaços mais focado e aprofundado nalgumas tematizações, e que é, a um tempo, uma obra teoricamente preciosa e um texto de leitura fascinante.

José Afonso Furtado»