DIAS DE ANTIOQUIA,
por Eduardo Pitta (*)
De um modo geral, os encontros de escritores, e os festivais de poesia em particular, são como os pratos de nouvelle cuisine. Visto o primeiro, estão todos vistos. Na Europa, o padrão é quase sempre melancólico. Presumo que nos Estados Unidos e no Canadá não ande longe disso.
Em contrapartida, na Colômbia, é uma experiência para a vida.
Durante anos, mais de 15, ouvi falar do Festival Internacional de Poesia de Medellín como de um rito de passagem. Amigos foram e voltaram com relatos de episódios homéricos. Entre eles, Ana Luísa Amaral e Nuno Júdice.
O festival leva a Medellín, todos os anos, dezenas de poetas do mundo inteiro. Em 2008, o «meu» ano, éramos 74, sendo colombianos 14. Da Coreia do Norte ao Uruguai, dos Estados Unidos ao Malawi, das Filipinas a Cuba, sem esquecer uma forte representação europeia — Alemanha, Espanha, Estónia, França, Irlanda, Noruega, Países Baixos, Suécia e outros —, a 18.ª edição do festival acolheu representantes de 54 países.
O colombiano Fernando Rendón, director da revista Prometeo, é quem gere a máquina infernal. Sob os seus ombros, a responsabilidade de garantir a segurança e o prestígio do festival, na cidade que viu nascer Botero. Verdade que Medellín não é mais o feudo de Pablo Escobar ou qualquer outro chefe de cartel, mas continua sendo uma metrópole perturbante, mesmo sem o traço grosso dos romances de Fernando Vallejo ou do filme que Barbet Schroeder fez a partir de La Virgen de los Sicarios (1993). Tudo pode acontecer naquele importante centro industrial e cultural cuja área metropolitana tem perto de seis milhões de habitantes. Se há sítio onde a Guerra dos Mil Dias (1899-1903) deixou sequelas, esse sítio é Medellín, segunda cidade do país. A querela entre liberais e conservadores prolonga-se hoje na cumplicidade velada ou no combate declarado às temidas FARC, que mantêm o terror em extensas zonas do sul, junto à fronteira com o Equador. A guerrilha de rua foi extinta, mas o impressionante número de «desaparecidos» não é de molde a tranquilizar ninguém.
Nenhuma surpresa, portanto, se confessar a inquietação que senti ao receber o convite de Fernando Rendón, lenda viva no milieu da literatura de causas, inimigo jurado da Direita colombiana, que todos os anos tenta, sem sucesso, associar o festival à lavagem de dinheiro das FARC. Em 2008, coube a dois poetas com colunas na imprensa de Bogotá, Harold Alvarado Tenorio e Eduardo Escobar, orquestrar a campanha mediática contra a Izquierda Asesina e os «convidados estrangeiros da Internacional Comunista». Sendo público que a organização recebe subsídios do Governo e apoio do presidente Álvaro Uribe, membro destacado da oligarquia dominante, a fronda destina-se a consumo interno (da corporação literária, entenda-se). Até a New Yorker, em artigo de Yvette Siegert, que acompanhou o festival, achou as acusações ridículas. E o holandês Bas Kwakman, director do Festival de Roterdão (e um dos mais reputados especialistas em Fernando Pessoa), fartou-se de rir com a cena dos «estrangeiros comunistas». A mim também já me chamaram muitas coisas, mas isso foi a primeira vez.
Impedido, por razões pessoais, de permanecer a semana toda do outro lado do Atlântico, cheguei a Medellín ao terceiro dia do festival e fiquei até ao fim. O Instituto Camões pagou 40% do valor do bilhete de avião, a Prometeo pagou os outros 60%, mais o hotel, refeições, deslocações na cidade, pocket money (o equivalente a 300 euros), tradutor e «leitor». Tudo muito eficiente, sem falhas. Mais: com grande e natural afabilidade por parte do staff da organização, constituído por rapazes e raparigas ligados ao ensino universitário e ao meio cultural. Quase todos falando um inglês irrepreensível. O tradutor designado para me acompanhar foi desviado para outras tarefas, uma vez que o meu portunhol foi unanimemente considerado perfeito.
A viagem de ida durou cerca de 20 horas, escalas incluídas, entre Lisboa, Madrid, Miami e Medellín. Cheguei à Colômbia às 11 da noite, quando eram quatro da manhã em Lisboa. Medellín tem dois aeroportos, o doméstico e o internacional. Desembarquei no segundo, mal equipado e pior iluminado, onde a primeira coisa que vi foram retratos (120 cm x 80 cm) de traficantes de droga e dos membros das FARC mais procurados. Nas salas e galerias de passagem, um polícia armado a cada dez metros, um cão para cada dois polícias, semblantes carregados. O europeu Schengen fica com vontade de voltar ao ponto de partida. Súbito, a «organização» toma conta de nós. Cada poeta convidado tem direito a tratamento VIP. Ninguém toca na nossa bagagem. Ao fim de meia hora, estou sentado num confortável jipe Hummer para passageiros, na companhia de Alexandra e Johnny. A cidade fica a pouco mais de uma hora, com dois checkpoints no trajecto.
É quase uma da manhã quando entro no hotel. Pela agitação, parece que são cinco da tarde. Um hotel com 74 poetas (deviam ser 76, mas os representantes do Brasil e da Itália desistiram da viagem), expressando-se em 28 idiomas diferentes, mais as equipas de acolhimento — tradutores, acompanhantes, honni soit qui mal y pense, funcionários da organização, fotógrafos e jornalistas —, é uma espécie de Babel. Fernando Rendón e o filho, Luis Eduardo, recebem-me no lobby. Querem que os acompanhe ao bar, mas vou directamente para o quarto. Afinal, estou há mais de 24 horas sem dormir.
No dia seguinte, ao pequeno-almoço, conheço o meu «leitor». John Viana é actor, um rapaz de simpatia desarmante, que trabalha numa dramaturgia do Livro do Desassossego. Fala da minha poesia como se toda a vida não tivesse feito outra coisa senão lê-la. Cita Pessoa com desembaraço. Nos dias seguintes, à margem da agenda literária, será o meu guia fora do perímetro «oficial». Foi ele que me levou aos municípios populares de Itagüí e Bello, à favela de Santo Domingo e também a Envigado, um subúrbio middle-class de fazer inveja à linha de Cascais. Santo Domingo, tida como das favelas mais perigosas do mundo até 2003, é hoje uma atracção turística por causa da Biblioteca Espanha (obra monumental de Giancarlo Mazzanti), a que se chega de teleférico a partir das profundezas do vale de Aburrá. Subindo as cordilheiras, o teleférico prolonga a linha do metropolitano, a maior da América Latina, única existente na Colômbia. Na sua companhia, conheci também o centro histórico: a famosa Candelária, basílica entalada numa rua estreita pejada de vendedores ambulantes; a Catedral Metropolitana, celebrizada pelo filme de Schroeder, situada no topo do Parque Bolívar; o Teatro Lido, um belo edifício art déco restaurado a preceito; o Museu de Antioquia, depósito da donación que Botero deixou antes de partir para o exílio europeu; a Passaje Junín, rua para peões que lembra Calcutá, etc. Na Passaje Junín, fica um café-restaurante de grande tradição literária, o Versailles. Almoço superlativo a qualquer coisa como 9 euros, para dois. O Museu de Antioquia inclui o melhor da obra de Botero, motivo de atrito permanente com os oligarcas, além de uma excelente representação de Débora Arango (a mulher que pintou os primeiros nus frontais, pagando cara a ousadia), Schnabel, Frankenthaler, Rodin, Manzù, Ernst, Katz, Matta, Tàpies, Barceló, Stella, Estes, Rauschenberg e outros. A menos de 100 metros do hotel, o trajecto para o museu faz-se por um «corredor» entre a avenida Greiff e a rua Calibio, no sentido da Carabobo, ladeado por esculturas monumentais de Botero. Em extremos diferentes, a moderníssima zona de serviços, decalcada a régua e esquadro do modelo americano, e o elegante Poblado, o bairro dos condomínios de luxo, do comércio de griffe, dos hotéis das grandes cadeias internacionais, dos melhores restaurantes, dos colégios e clubes privados, enfim, a Medellín glamorosa. A antítese da lenda.
Não houve tempo para o Museu de Arte Moderna nem para o Parque de los Deseos.
Nos oito dias do festival, realizaram-se para cima de 100 sessões: as 96 que tiveram lugar em Medellín e mais 14 noutras cidades de Antioquia. Houve também um seminário de poesia. Em Medellín, os espectadores são às centenas em cada uma das 12 ou 14 sessões que se realizam por dia, em horário simultâneo. Nos saraus colectivos de abertura e fecho, são aos milhares. Eu sei que custa a acreditar. Não fui o único a ficar perplexo.
Como sempre acontece, o anedotário é de regra. Por exemplo, na sessão de encerramento, no Teatro Carlos Vieco (auditório ao ar livre em forma de teatro grego, com 5000 lugares em anfiteatro), completamente lotado, tendo em vista a participação dos 74 poetas, ficou estabelecido um único poema por poeta. Como a maior parte dos poemas obriga a duas leituras, a primeira pelo autor, na língua original, a segunda pelo tradutor, em castelhano, a sessão dura perto de sete horas (das 16 até quase às 23 horas). Sobrevivi. Toda a gente respeitou, embora Eduardo Espina, do Uruguai, tenha lido um poema com 666 versos; Yolande Mukagasana, do Ruanda, tenha feito um speech de 40 minutos sobre a matança entre hutus e tutsis, na qual perdeu o marido, os três filhos e os irmãos; Andrei Khadanovich, da Bielorrússia, que não dispensou o número de circo, dando pinotes e invertendo a ordem de leitura (o tradutor primeiro, depois ele); e a fogosa Freedom Nyamubaya — uma mulher chamada Freedom não augura nada de bom —, do Zimbabwe, que entrou, levantou os braços e esteve mais de meia hora a dar gargalhadas roucas, levando a plateia ao rubro e pondo em risco a instalação sonora.
No lobby do hotel, territórios definidos. Hierática, a delegação da Coreia do Norte nunca se mistura. Os de África também não. Só Frank Chipasula, do Malawi, homem de humor muito fino, que me disse ter um filho a estudar em Maputo. Os europeus cada um na sua. Os do Báltico quase a pedirem desculpa de existirem, atordoados com o langor. O esloveno Brane Mozetic, activista gay, tradutor de poetas portugueses, mobilizando quem pode para a ronda da noite. Medellín não é Cáli, a Sodoma colombiana, mas candidata-se ao lugar. O sueco Henrik Nilsson, que viveu uns meses em Lisboa, e levou Sophia à Escandinávia, pergunta pelo estado da nossa literatura. Lina Zerón, do México, prefere o agit-prop. Participa comigo em duas sessões, é a preferida do público. A colombiana Isabel García, e seu marido, Armando Orozco, bem como a israelita Rachel Tzvia Back, são companhias constantes. O corrupio entre bibliotecas, casas de cultura, clubes privados, teatros, universidades, bares, parques públicos, etc., toma o tempo todo. No jardim de um country club de luxo, na penúltima noite, uma assistência elegante não arreda pé quando começa a chover. Abrem os chapéus e continuam a ouvir-nos. No fim, como de regra, vêm pedir autógrafos, comentar os poemas, fazer elogios. Não são os estudantes da Sala Beethoven (o teatro de concertos), são adultos sofisticados, entre os 30 e os 50 anos, que citam Creeley e Akhmatova com naturalidade. A noite acaba com Pinot noir chileno, entre a luz coada pelas palmeiras.
O regresso é atribulado. O avião tem partida marcada para as sete da manhã de domingo. É preciso estar no aeroporto com três horas de antecedência. Avisam-me: «O carro que o vai levar sai do hotel às 02h50 da madrugada. Esteja na entrada dez minutos antes.» Passa-se isto na noite de sábado para domingo. A clausura acabou perto das 11, segue-se o jantar de despedida, e depois um baile… A maioria dos poetas partirá à tarde, mas há o grupo madrugador: eu, a israelita Rachel Tzvia Back (que voa comigo para Miami), os cubanos Manuel Garcia Verdecia e Alex Fleites, além de Chiqui Vicioso, da República Dominicana. Todos temos de estar prontos às 02.40, o que significa que nem baile nem dormida.
A equipa de León não falha: partimos à hora marcada. Na noite escura estão talvez sete graus. O terminal do aeroporto desaparece na neblina. Tenho de pagar um imposto esquisito para deixar o país, qualquer coisa como 20 euros, uma fortuna em moeda local. O cansaço é alucinante. Adormeço assim que o avião vence os Andes. Só chegarei a Lisboa ao cabo de uma jornada de 29 horas consecutivas, porque a conexão em Miami é de seis horas. À chegada a Miami, um funcionário da Alfândega, de origem porto-riquenha, quer saber o que fui fazer a Medellín. Explico. O rapaz nunca ouviu falar de festivais de poesia. Revista a bagagem de mão e apalpa-me com salero.
Já do «outro lado», vou directamente para o Miami International, o hotel com acesso pelo piso 2 do Terminal E. Pausa para sms & gin tonic no bar da entrada. Depois, SPA no 8.º piso. Às duas, almoço no Top of the Port, vendo chegar e partir aviões em grande angular, num silêncio absoluto. Quando saio, falta menos de uma hora para embarcar. A bordo, reflicto na espantosa demonstração de vitalidade e profissionalismo da equipa Prometeo.
(*) Eduardo Pitta nasceu em 1949. É escritor, poeta, ensaísta, crítico, colunista da revista LER e autor do blogue Da Literatura. A sua obra mais recente é o livro de crónicas Aula de Poesia (2010).
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