quarta-feira, 3 de março de 2010

Opinião: Correntes ao sabor da pena, por Manuela Ribeiro

CORRENTES AO SABOR DA PENA,
por Manuela Ribeiro (*)

Pedem-me um texto sobre as Correntes. Que maldade! Logo agora que as Correntes prendem e apertam e ferem e magoam. Sim, as Correntes também doem.

Ninguém diria, eu sei. Ou melhor, imagino!

A verdade é que não consigo olhar para trás sem pensar que sempre acreditei que as Correntes chegariam aqui. Falta saber o que é «aqui». Advérbio de lugar? De tempo?

Neste momento, espalhadas pela minha secretária, pilhas de documentos: horários de comboios (Lisboa-Porto-Lisboa), planos de viagens de avião, lista de participantes, com nacionalidades e sem nacionalidades, orçamento, várias propostas de temas de mesas — ai!, os temas, esses quebra-cabeças de alguns —, o orçamento, o programa e muitos papéis e mais papéis e mais orçamentos, nesta mesa desorganizada e enlouquecida. Na minha caixa de correio electrónico, muitas mensagens por responder. Umas por não serem urgentes e interessantes, outras por não saber o que dizer, outras porque «o que não tem remédio, remediado está». E-mails a chegarem a cada instante, uns a seguir aos outros. E muitas respostas. A tudo. A todas as perguntas. A todos os pedidos. A todos os desafios. E que desafios! Os mais variados. E os convites e os cartazes e os marcadores de livros e os envelopes e o telefone que toca e toca e o telemóvel. E outra vez as perguntas. E orçamentos e o orçamento a martelar-me o cérebro. Já não durmo ou durmo com o orçamento. E garanto-vos que gostaria de muito melhor companhia. Mas essa já não me cai na sopa!

As paredes do gabinete forradas de caras de escritores, nas expressões mais variadas. Ali, a fazerem-me sofrer ainda mais. Algumas sorriem, outras olham-me, indiferentes.

E eu de roda do programa e das mesas e dos lançamentos de livros e das escolas, e os editores a quererem saber coisas, e os autores a precisarem ainda de mais uns pormenores, e os jornalistas a solicitarem informação, e o gabinete de comunicação a querer organizar os materiais de divulgação, e os textos para a revista, e a falta de respostas e… Ah!, tenho de organizar a sessão de abertura, e saber quem vai estar na mesa, e saber se os convidados já responderam, e o número de páginas da revista e as medidas, e os possíveis patrocinadores, que teimam em estar em reuniões e mais reuniões, a adiarem as respostas para o dia seguinte. E, às vezes, muitos «às vezes» este ano, finalmente, uma pequena vitória. Ai, que bom! Não estava à espera desta resposta e nem desta. Mas logo, mais derrotas! Estes disseram que não: «Ainda se fosse desporto!» De preferência futebol, acrescento eu! E estes também: «Não!» Não! Não é possível!

Pena! Raiva!

Os bilhetes de comboio a caírem no computador. E os de avião para reencaminhar. E de novo o orçamento e os números, e eu que fui para Letras para fugir dos números, que me perseguem desde a mercearia dos meus pais, desde os tempos da mais tenra infância, quando era necessário fazer contas à vida. E agora, não é?

Pois, já perceberam que esta não é a melhor altura para escrever o que quer que seja sobre as Correntes. Quais Correntes? Ah, aquelas que chegaram aqui.

Pois, estando aqui e olhando para diante, não sei onde poderão ainda chegar as Correntes. A actual conjuntura e a crise de que ouvimos falar a cada instante impedem-me de pensar num futuro. De pensar se haverá futuro para as Correntes. Tão negro é pintado o presente. Até me pergunto quem terá sido o brincalhão que escondeu a paleta de cores que permitia sonhar um sorriso nas caras tão sorumbáticas de um quotidiano de pessoas tristes.

E eu a pensar que era chegada a hora de Portugal acreditar que a leitura, os livros, enfim, a literatura, fariam a diferença.

Fartamo-nos de ouvir falar da importância da indústria cultural na economia do país. Da quantidade imensa de gente que vive (talvez sobreviva, ou nem por isso!) à custa dessa actividade. A verdade é que a cultura ainda assusta. Pois, alguma razão haverá. O conhecimento não liberta as pessoas? Não era disto que falava Platão, afinal? Pois. E quem é Platão? Ah, não! Isso são teorias. Do tempo das Cavernas! Utopia.

E chegámos lá. À Utopia. E não é utopia o que acontece na Póvoa de Varzim? Lídia Jorge acha que, na Póvoa, em Fevereiro, «um pedaço de Utopia é possível». E isso, a quem interessa, afinal?

Arnold Wesker responderia: «Se achas que a educação» — eu digo a cultura — «sai cara, experimenta a ignorância!»

Mas, e isso conta?

Os meus amigos dizem que sou pessimista. Talvez. Mas quem não é? O mundo gira à roda do dinheiro. A cultura também. E dinheiro não há.

E manter a ignorância é, de facto, mais barato. Muito mais barato. Incomparavelmente mais barato. O resto, que importa?

Que importa que, 11 anos depois, se mantenha de pé o único encontro de escritores que, em Portugal, durou pelo menos 11 anos?

Olho para trás e pergunto-me se valeu a pena.

Vale a pena acreditar na Utopia? Vale a pena apresentar salas cheias para ouvir falar de livros e de literatura?

Vale a pena acreditar na magia da voz das palavras?

Vale a pena acreditar em diálogos entre escritas e geografias?

Vale a pena acreditar em mais de 300 escritores?

Vale a pena acreditar em 35 000 espectadores, 212 novos livros, 95 mesas redondas, 97 mesas para o público escolar, 30 sessões de poesia, nove exposições, seis catálogos, oito revistas, seis conferências de abertura, três prémios literários, mais de 1500 livros ou trabalhos já publicados ou inéditos e mais de 15 prémios entregues?

Vale a pena acreditar no que dizem de nós, os escritores? Não são eles ficcionistas? Não estarão eles a inventar mais uma história?

«Uma improbabilidade. Um milagre!» — Hélia Correia

«Um exemplo de persistência» — Inês Pedrosa

«Singular acontecimento cultural» — José Carlos de Vasconcelos

Vale a pena acreditar em adjectivos para definir a organização, «impecável e irrepreensível», citando Francisco Belard?

Para mim vale. Para muitos vale.

Francisco Duarte Mangas considera que «o evento é a prova, afinal, de que as palavras não são pátria de ninguém».

E isto importa à pátria? Se não importa, tem de importar. A pátria tem de acreditar que há uma pátria de e da PALAVRA na Póvoa de Varzim. E os patriotas também.

Ou, então, vamos todos à procura de um livro que possa mudar a nossa vida. Mudamos de vida e pronto.

(*) Nasceu em 1963, na freguesia de Navais, Póvoa de Varzim. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Foi professora de Português e Francês na Escola Secundária Eça de Queirós, trabalhou como jornalista na SOPETE Rádio Mar e como correspondente no jornal Público. Está ligada, desde 1995, ao pelouro da Cultura da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, sendo responsável pelo Gabinete de Projectos Socioculturais. É co-organizadora do evento literário Correntes D’Escritas — Encontro de Escritores de Expressão Ibérica e co-coordenadora da revista Correntes D’Escritas.
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