domingo, 31 de maio de 2009

Pré-Publicação: Um Outro - Crónicas de uma Metamorfose, de Imre Kertész (Editorial Presença)

Mil novecentos e noventa e um, Outono na margem fria do Danúbio, o crepúsculo, caindo, inundou com a sua cor ácida de maçã verde a espaventosa mentira dos palácios desbota-dos de Peste.

Tudo, em mim, adormece, imóvel e profundamente. Vou remexendo os sentimentos, e os meus pensamentos, como num tambor de alcatrão tépido.

Porque me sinto assim tão perdido? Manifestamente, porque estou perdido.

Tudo é falso (por minha culpa, por meu intermédio: a minha existência falseia tudo).

Se o vazio (o meu vazio interior) ressuma um sentimento de culpa, talvez isso permita concluir das origens. A angústia precedeu a Criação; o horror vacui é uma questão de facto ética.

Ontem, numa espécie de sessão — com uma chamada conferência excessivamente estúpida sobre a excessivamente estúpida «Hungarian­ jewish coexistence» —, um senhor mais velho precipitou­ se na minha direcção, tinha o rosto granu­loso e deformado, e manchas seguidas de cabelo ralo, como assentos gastos de certos canapés aveludados: nem um só traço me era familiar. Para grande surpresa minha, abraça­ me, de súbito, e apresenta­ se: um amigo que não via há trinta e cinco anos. Vive no estrangeiro. Ouviu falar de mim, lera os meus livros. Não compreende, diz, a minha «metamorfose». Então, ele nada notara de extraordinário em mim, nem eu dera mostras, digamos, de «capacidades superiores». Desculpei­ me um tudo-nada por este resultado inesperado, mas as suas palavras mexeram, na verdade, comigo. Tendi sempre, agora não menos do que antes, a considerar­ me um «Jedermann», alguém que, pelo menos de um certo ponto de vista, não receou esforçar­ se, e, antes de mais, no que respeita à lucidez de espírito. Quais são as minhas «capacidades superiores»? Não sigo a única inspiração deste país: o canto incessante e sedutor das sereias do suicídio espiritual, intelectual e, por fim, físico, e isso representa uma certa vitalidade. Contudo, assumir este mínimo como uma vitória seria gravíssima imprudência, e, mais do que isso, uma absoluta falta de cautela. O que mudou agora com a «mudança»? Já não há servidão? Fiquei a salvo de mim mesmo? Simplesmente, aconteceu que me devolveram a conditio minima, a minha liberdade individual — rangendo, abriu­ se, assim, a porta da cela em que me fecharam durante quarenta anos, e pode dar­ se que seja bastante para me perturbar. Não se pode viver a liberdade onde se viveu o cativeiro. Seria preciso ir para qualquer lado, ir para muito longe daqui. Não o farei.

Pois, nesse caso, seria preciso que eu de novo nascesse, me metamorfoseasse — em quem, em quê?

Chove. À mesa do restaurante, um homem explica qualquer coisa a uma mulher, qualquer coisa de inexplicável. Ele gostaria de abandonar os ensaios de felicidade que encalham regularmente. Sente­ se cansado de ir atrás do prazer pelas falsas estradas das promessas, que não conduzem a lado nenhum. Não é outra mulher, ora essa, nem pensar. A liberdade. Regressar à superfície, sair do turbilhão confuso das relações que se arrastam há anos. Está farto de reconhecer em cada uma das relações as suas próprias insuficiências. Vislumbra uma vida breve, intensa, criativa.