segunda-feira, 4 de maio de 2009

Opinião: As notas de rodapé na tradução, por Helena Pitta

AS NOTAS DE RODAPÉ NA TRADUÇÃO,
por Helena Pitta (*)

Há livros que, por inúmeras razões, gostaria de ter traduzido ou de vir a traduzir, romances que me marcaram, livros de autores cuja escrita me arrebata. Aconteceu-me isso com um romance há alguns meses, por uma outra razão. Não que não tenha gostado do livro. Gostei muito. Mas, neste caso, foi pela afinidade imediata que senti com o escritor: um escritor que não teve receio de encher o seu romance com notas de rodapé, muitas delas enormes e algumas ocupando mesmo 2/3 da página. Nunca as tinha visto com esta dimensão e, confesso, fiquei fascinada. Falo de La maravillosa vida breve de Óscar Wao, de Junot Díaz. O autor, um dominicano radicado nos Estados Unidos desde criança, achou necessário explicar, apesar da proximidade geográfica e da percentagem elevadíssima de latinos nos EUA, uma série de referências presentes no texto, relativas à cultura dominicana, à situação política do país e a muitos dos seus intervenientes. E achou necessário, julgo eu, porque a perda para os leitores seria muito grande sem essas notas (deliciosas) de que o livro está pejado. Pôde fazê-lo, evidentemente, e fazê-lo com essa liberdade e extensão porque era o autor.

Este é, pela própria extensão das notas, um exemplo extremo. Mas parece-me que a inserção de pequenas notas de rodapé nas traduções dos romances, sobretudo na ficção de autores de outros continentes, se justifica cada vez mais. Nos primeiros anos de profissão enchia as traduções de notas porque sentia uma pena imensa de que os leitores não se dessem conta de uma série de piscadelas de olho do autor, que enriqueciam o texto, lhe davam cor local, e porque achava que as perdas inerentes a uma tradução podiam ser diminuídas através dessa meia dúzia de linhas no final da página. Hoje deixei praticamente de as fazer. E deixei de as fazer, com muita pena minha, porque encontro sistematicamente uma enorme resistência (embora, em abono da verdade, nunca me tenha sido imposta qualquer limitação por parte das editoras). Relativamente a este assunto há um consenso, em minha opinião bastante elitista, que começa nos autores e que engloba os próprios tradutores. Parte-se do princípio de que, na maior parte dos casos, as notas de rodapé, além de perniciosas porque interrompem a leitura (mas não compreender o que se acabou de ler também não o fará?), são um facilitismo e uma cedência à mediocridade: que quem for culto não precisa delas e que quem não souber e estiver interessado que vá procurar.

Este romance de Junot Díaz espelha uma realidade comum a grande parte da literatura latino-americana publicada na Europa que continua a ser, maioritariamente, uma literatura da diáspora. Acabadas as ditaduras militares dos anos 70 e 80, continuam no entanto a subsistir condições políticas, sociais e económicas que levam muitos autores a um exílio voluntário na Europa ou nos Estados Unidos. Vivem fora mas continuam a ser autores latino-americanos, sem grandes diferenças relativamente aos escritores que permanecem no país. E isso reflecte-se na sua escrita, na nostalgia que, aberta ou subtilmente, está presente nos seus livros, na acção que decorre quase sempre no país de origem; nos protagonistas que são geralmente compatriotas; nas referências culturais (a músicas, a comidas, a estereótipos, a lugares, a organizações políticas actuais ou não) que são permanentes. E que, não sendo apreendidas, diminuem drasticamente a compreensão do texto e o próprio prazer da leitura. Porque ninguém é seduzido pelo que não compreende. Não basta seguir o texto, a história, é preciso captar o ambiente, a época, o estado de espírito das personagens, é necessário aperceber-se das ironias, da riqueza dos subentendidos. Muitas vezes isso não é conseguido, ou só o é parcialmente, porque as referências são demasiado locais, não são compreensíveis noutros países e parte dos leitores nem se dá conta delas. Uma boa tradução só é possível quando a realidade a traduzir é conhecida e familiar ao tradutor e a frustração deste é bem menor quando, fazendo uso dessa familiaridade, consegue transmitir a um leitor de outra língua e de outra latitude tudo aquilo que as limitações da escrita deixam apenas entrever e tenta explicar em meia dúzia de linhas aquilo que o texto refere mas não explica, e que nos é estrangeiro. E é aí que entram as notas de rodapé. Omiti-las origina um texto irremediavelmente truncado e mais pobre. Porque essas piscadelas de olho existem, como acto voluntário e consciente de cumplicidade com o leitor, para serem desfrutadas. E, muitas vezes, só o preconceito impede que o sejam. Assim, negociemos, don Inodoro!

(*) Helena Pitta nasceu no Porto, mas cresceu na Madeira; bolseira na URSS, concluiu a licenciatura em História na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Depois de alguns empregos de sobrevivência, começou a fazer traduções de língua espanhola, dedicando-se em exclusivo à tradução de literatura espanhola a partir de 1992.
(**) Este texto, inevitavelmente, inclui uma nota de rodapé que, a talho de foice, exemplifica o que foi dito. «Negociemos, don Inodoro» é uma frase recorrente de Mendieta (o cão do gaúcho Inodoro Pereyra, criado pelo argentino Roberto Fontanarrosa), quando quer convencer o dono da necessidade de um compromisso devido à ausência ou à debilidade de outras opções. Não me convenço de que, por mais cultos que sejam os leitores deste blogue, sejam muitos aqueles que leram Inodoro Pereyra, não editado nem vendido na Europa. E conhecê-lo não faz de mim uma pessoa mais culta, reflecte apenas uma maior familiaridade com uma determinada cultura.