quinta-feira, 2 de abril de 2009

Zeferino Coelho, José Saramago e a Caminho

Zeferino Coelho foi uma das pessoas ouvidas por João Céu e Silva na construção da obra Uma Longa Viagem com José Saramago. Deixamos aqui esse pedaço, retirado das páginas 48 a 52.


«Está na hora de inventariar como foi o percurso editorial de José Saramago e para isso nada melhor do que falar com Zeferino Coelho, o editor que o acompanha desde quase sempre à frente dos destinos da Caminho, uma pequena empresa quando aceitou publicar uma primeira peça de teatro no seu catálogo no ano de 1979: «Conhecia-o de o ler nos jornais mas o primeiro contacto que tive com ele foi no final de 1978, quando telefonou para a Caminho e disse que tinha um livro que nos queria propor. Nessa primeira conversa que tive com ele disse-lhe para deixar o livro e que, após o ler, lhe diria se o publicávamos ou não. Li a peça – A Noite – e gostei. Achei-a boa e com piada e poderia ser a forma de assinalar mais um aniversário do 25 de Abril, pois passava-se numa redacção de um jornal (penso que a do Diário de Notícias) na véspera da revolução. Não teria grande futuro comercial, no máximo venderia umas escassas centenas de exemplares e acabaria por ser representada por um grupo a troco dos direitos oferecidos, mas nessa altura a Caminho estava no princípio e precisava de autores portugueses. Tínhamos o mesmo problema que as outras editoras, os autores mais interessantes têm editor, são bem tratados e não mudam. A Caminho ainda tinha outro problema, uma forte conotação política – eu não discuto política com os autores a não ser que eles queiram e já nessa altura não o fazia – mas era um rótulo a que não se conseguia fugir. No caso de José Saramago, como ele já tinha publicado o Manual de Pintura e Caligrafia, que na minha opinião era um bom livro, pensei que uma peça não nos daria grande lucro mas talvez ele voltasse a escrever um romance no futuro. Se lhe dissesse logo não ao que me propunha, era certo que ele não voltaria. Também pensei que se ele me trazia uma peça de teatro era porque achava que a editora – tendo aquela conotação e sendo ele comunista – tinha a obrigação de a publicar, mesmo estando nós já em 1979 e a comemoração do 25 de Abril fosse de um relativo mau gosto à época. Pesando tudo, e achando que era uma boa peça, telefonei-lhe e disse que a publicávamos. Comecei logo a perceber que o Saramago era um tipo certo, na entrega e na revisão das provas, na combinação dos direitos de autor e tive essa confirmação mais para a frente. Não inventa, não altera as combinações, não resmunga, diz o que pensa e respeita os acordos. Depois, lá para o fim de 1979, princípios de 1980, ele telefonou-me outra vez para dizer ‘Quero levar aí um romance’ e trouxe-me o Levantado do Chão. Encontrámo-nos e ele deu-me o original – sempre limpo e com poucas emendas – e pedi-lhe para o deixar ficar que um dia desses ligava a dar uma resposta. Li o livro e gostei muito. Recordo que falei com o meu colega Vítor Branco e disse-lhe que tínhamos ali uma coisa em que devíamos apostar. Entusiasmei-me com o livro e achei que era uma coisa diferente, estava certo do seu valor – mas nós estamos sempre convencidos de que temos um sucesso e ao fim de um ano é que vemos que não havia motivo para tal e perguntamo-nos ‘o que é que eu tinha na cabeça?’ Mas estava convencidíssimo do valor do livro e a editora continuava naquela ânsia de ter novos autores portugueses, por isso resolvemos fazer uma grande edição e avançámos. Eu sugeri ao meu colega que fizéssemos uma tiragem de cinco mil exemplares porque iria ser um sucesso – o livro iria marcar um tempo e aparecer em todo o lado – e lá fizemos uma impressão enorme para a época, com um lançamento na Casa do Alentejo com muita gente – a mãe do Saramago ainda lá esteve – e foi um enorme êxito. E eu fiquei espantado com o que aconteceu no lançamento, todos contentes e uma grande festa apesar de ainda ninguém conhecer o romance. Fiquei espantado, mas, de facto, o livro começou logo a funcionar bem e teve uma boa recepção crítica. A Maria Lúcia Lepecki fez uma recensão a dizer que era uma coisa nova e que as vendas eram muito boas. Não sei quanto tempo demorou a esgotar essa primeira edição, talvez um ano, mas ao fim desse tempo tínhamos o livro esgotado o que era algo extraordinário. A relação da Caminho com o Saramago fixa-se nesta altura, pois quando um livro corre bem a relação do autor e do editor tende a consolidar-se, quando corre mal a relação pode não se estragar, mas não é como quando há uma boa notícia, que se esteja, e o livro veio dar à Caminho o primeiro grande autor a par de um outro grande sucesso do ano anterior com o livro infantil da Alice Vieira, também uma revelação nesse tipo de literatura. Em 1980, tínhamos dois autores muito reconhecidos e a funcionar bem comercialmente, o que ajudava muito a editora a ultrapassar a situação de grandes dificuldades com que começara a actividade em 1977. Dois anos depois, saiu o Memorial do Convento, um livro que ainda hoje muitos consideram o melhor dele e que na altura o Eduardo Prado Coelho até disse que ‘com este livro, José Saramago alargou a sua base social de apoio’, numa tentativa de afirmar que o Levantado do Chão ainda poderia ser algo do velho neo-realismo, embora inadequadamente porque o livro era muito mais do que isso, até porque falar também da Reforma Agrária numa altura em que a estávamos a desmantelar era terrível. Mas do Memorial do Convento, que era um romance histórico passado no século XVIII, já não se podia dizer que era fruto de uma literatura militante. O autor era o mesmo, tinha as mesmas ideias – e elas estavam lá – mas a temática do romance era outra. Publicado com uma tiragem inicial muito maior, teve logo várias reedições. Depois, o Saramago atreveu-se n’O Ano da Morte de Ricardo Reis a pegar no Fernando Pessoa, que tem uns donos que não gostaram que se tivesse metido de uma maneira ousada com o poeta, mas ele entra muito bem naquela temática complexa do Pessoa. E, ainda por cima, o Saramago arranja uns títulos sempre bons, às vezes muito bons, e este era um título perfeito… E nessa altura ele estava lançado.»


E não era complicado vender um autor assumidamente comunista?
«Era complicado e então se juntarmos isso a uma editora considerada comunista, ainda pior o seria nos anos 80! Nós tivemos esse problema, mas a ideia era construir uma editora onde se publicava toda a gente e não era preciso mostrar o cartão do Partido, mas onde também se podia trazê-lo e não o editarmos. Essa ideia criava-nos uma situação difícil que o Saramago ajudou a resolver porque ele era bom e os leitores queriam lê-lo. No estrangeiro, isso também pesa – é estranho ser-se comunista em alguns países – mas quando se chega a esse estágio já está tudo diferente de quando chegaram a nós. Numa primeira fase o Saramago não era o grande escritor – haveria de ser mas ainda não o era – mas quando ultrapassa a fronteira já o é. O primeiro contrato foi para Itália, por via da amizade com a Carmélia, que tinha contactos com a Feltrinelli e essa tradução abriu-lhe as portas. O livro funcionou muito bem em Itália – o Fellini até terá dito que «gostava de um dia fazer um filme do Memorial do Convento» – e depois a palavra foi passando de um país para o outro e, nessa altura, o que menos interessa é que o autor seja comunista. Ele gosta de criar anticorpos porque é uma pessoa muito afirmativa, com opiniões pelas quais se bate e, num certo sentido, não mede consequências. O Saramago não se ajusta ao politicamente correcto! Há uns anos sugeri-lhe recolher alguns dos seus textos de jornais – as coisas mais importantes e gerais – e ele disse-me ‘Vou fazer isso’. De algumas das coisas que lá meteu, eu até lhe disse que poderiam causar problemas tantos anos depois, mas a resposta foi ‘eu escrevi isto e até está publicado, porque é que vou arrumar conforme as minhas conveniências de hoje? Ou faço o livro com o que publiquei ou não faço o livro’. Tem opiniões e defende-as, não se acomoda àquilo que possam ser as conveniências do momento. E quando foi de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, aquela polémica até foi boa para o livro porque muita gente iria lê-lo só por essa razão. Foi uma decisão idiota de um senhor idiota porque não condiz com a situação em que vivemos nem é assim que nos relacionamos, mas o Saramago não escreveu aquele livro para ter uma polémica. Ele não faz coisas para vender mais livros, faz porque pensa assim. Se há uma polémica que faz vender mais, isso não é responsabilidade do Saramago.»


O que faz cada vez que recebe um original de José Saramago?
«Habitualmente, e o que faço desde sempre, é colocá-lo debaixo do braço, ir para casa e ler. No dia seguinte falaremos. De um modo geral, não lhes vejo defeitos; houve uma vez que falei com ele sobre A Jangada de Pedra porque havia ali uma parte que a meu ver não está resolvida e acho que ele até concorda. Com este último, As Pequenas Memórias – que deveria chamar-se O Livro das Tentações – fiquei fascinado quando ele me deu a ler as páginas iniciais há uns oito anos. Era literatura pura, deliciava-nos com a musicalidade das palavras e mostrava o encantamento pela vida, e eu pedia-lhe para o editar mas ele não tinha pressa. Eu explicava-lhe que as suas descrições eram muito bonitas – o milho a roçar na cara, o campo, a beira do rio – e até parecia que estava a ouvir uma linda peça musical, mas ele foi adiando sempre até o ter terminado. Eu gostei muito do livro, mas reclamei por lhe faltarem partes importantes e disse-lhe ‘não vejo aqui a parte do campo do milho, tiraste certas evocações do sentimento, faltam as patas dos cavalos na terra…’ São coisas deste tipo que lhe digo. Trabalhar com o Saramago é muito fácil, ele quer é o trabalho bem feito, não resmunga e diz o que deseja directamente. Aliás, este é um lado seu que é menos visível, o de ser uma pessoa afável e muito amiga. Preocupa-se e está atento, se está a falar de negócios defende os seus interesses, mas uma vez assente acabou. Não me lembro de ter havido alguma vez uma sombra entre a editora e o escritor e é uma situação que decorre da sua personalidade.»


Sente mais responsabilidade por ter um Prémio Nobel no seu catálogo?
«Saramago diz a certa altura que ‘não nasci para isto’. Eu não, eu nasci para isto mas nunca imaginei que me acontecesse. Ele esteve vários anos na iminência de ganhar o Nobel e isso tornou a situação menos inesperada.»


Qual é o romance de Saramago que mais o surpreende?
«Pesando tudo, acho que o Ensaio Sobre a Cegueira é o seu melhor romance, mas continuo a esperar dele bons livros. Já me mostrou partes do que está a escrever (A Viagem do Elefante) e gostei muito.»

Conversa feita com o editor de José Saramago, lembro-me de, após um anterior encontro ainda na antiga sede da Editorial Caminho – onde agora está instalada a Fundação com o nome do escritor –, nos termos cruzado com uma visitante que contou uma história passada com uma leitora de Português residente em Salzburgo, relacionada com Zeferino Coelho: «Ela referia-se sempre a si como o Sr. Trotsky». E assim é, pois, devido ao formato do rosto e à barba aparada no mesmo estilo, o editor assemelha-se ao aspecto daquela figura da história soviética.»