segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Opinião: Anotações à Margem: Panorama editorial da BD em Portugal, por Sara Figueiredo Costa

ANOTAÇÕES À MARGEM: PANORAMA EDITORIAL DA BD EM PORTUGAL,
por Sara Figueiredo Costa (*)

Um conjunto de fenómenos imbricados e com ramificações malévolas marca a presença da banda desenhada no meio editorial português. Tal como parte considerável da nossa intelectualidade, a maioria dos editores tem com a BD uma relação de desconhecimento total, ignorando quase tudo o que já se produziu nesta linguagem e lembrando apenas um ou dois heróis mais conhecidos, ou de desconhecimento parcial, crendo que a BD é uma coisa de miúdos e de graúdos que nunca souberam abandonar uma certa nostalgia da infância. Nenhuma das atitudes é exclusiva do meio editorial, daí o «conjunto de fenómenos imbricados...» que exagerou o início deste texto. Quando se fala de banda desenhada com qualquer pessoa, digamos, informada, as reacções são semelhantes: ou é uma coisa de miúdos, ou é uma coisa de fãs, uma espécie de seita reduzida que continua à espera de uma visita do Super-Homem ou de uma reportagem de Tintim. Não costuma haver meio termo e quase nunca há um conhecimento mínimo da bd que vá para além do óbvio (super-heróis, Tintim, Astérix, meia dúzia de séries que marcaram a infância e a juventude e, no caso de um interlocutor com mais de meio século, a recordação de algumas revistas históricas como O Mosquito ou O Cavaleiro Andante). Assim sendo, edita-se em função destes conhecimentos e da adaptação possível ao que se sabe do mercado. Na minha modestíssima opinião, edita-se mal. E o mercado confirma-o: depois de alguns anos de crescimento, que juntaram o domínio da Meribérica-Liber (já em declínio, mas ainda marcante) à proliferação, contida mas animada, de edições de novos autores portugueses e de autores estrangeiros nunca antes traduzidos, a queda do número de títulos e das tiragens de livros de BD é conhecida e muitos editores afirmam que editam para um grupo reduzido de leitores, que, sendo sempre os mesmos para cada título editado, não asseguram a compra de muitos títulos (o que, obviamente, faz com que as editoras apostem cada vez menos na edição de mais títulos, o que leva a uma oferta cada vez mais reduzida e incapaz de captar novos leitores, e por aí fora até ao desastre final).

Quando olhamos para a oferta editorial de banda desenhada em Portugal, começam a vislumbrar-se algumas pistas para compreender a desgraça dos últimos anos. O que é que se edita? Falando apenas de editoras com capacidade de distribuição, e esquecendo a auto-edição e os projectos alternativos (de onde, curiosamente, surgem as propostas mais interessantes do meio, mas isso já seria tema para outro texto), editam-se, sobretudo (e realço o «sobretudo», porque têm surgido algumas coisas fora deste círculo), séries franco-belgas com muitos anos, algumas séries franco-belgas mais recentes, um ou outro título desgarrado de grandes autores «clássicos», um ou outro título desgarrado de comics norte-americanos e mangá, uma aposta recente da Asa que ainda não sabemos como correrá. E porque é que não se editam outros títulos? Porque os editores acreditam piamente que eles não venderão, ou que comportam um risco muito grande. Em debate recente com editores portugueses, estando eu a moderar a mesa, coloquei essa questão aos presentes, dando alguns exemplos de autores fundamentais e que poderiam interessar a outros públicos que não o pertencente ao círculo vicioso dos fãs. Apesar de nenhum dos meus exemplos ter sido o livro Blankets, de Craig Thompson, que muitos críticos consideram um marco, a resposta quase uníssona foi: «Como poderemos suportar os custos de um livro como o Blankets, que tem mais de 600 páginas?» Resposta esclarecedora, como se todos os livros que valeria a pena editar tivessem a espessura material do Blankets. Nem os exemplos recentes de Palestina, de Joe Sacco (co-editado pela Mais BD e pela Devir, esteve exposto nas livrarias fora do canto habitual da bd, juntamente com as outras novidades, e a edição esgotou, mas há editores que acreditam que isso se deve ao facto de um dos seus dois volumes ter sido prefaciado por Mário Soares), ou de Persépolis, de Marjane Satrapi (que marcou o único momento em que um autor, neste caso, uma autora, de BD foi capa da Ler e que, apesar de ter tido uma edição portuguesa miserável e truncada – apenas um volume saiu – vendeu muitos exemplares das edições francesa e inglesa em livrarias portuguesas) serviram de contra-argumento.

Para não me estender na descrição do pouco conhecimento que atravessa quase todas as conversas sobre banda desenhada, incluindo as tidas entre pessoas que frequentam o dito meio da BD, avanço para a manifestação de uma esperança: se conseguirmos, algum dia, ter um mercado editorial de BD saudável, alimentado por livros de qualidade escolhidos por quem os conhece e os sabe colocar em contexto, creio que esse sucesso virá das editoras não especializadas. Será mais fácil que um editor generalista com um gosto estruturado e uma postura firme de querer conhecer o que pode editar consiga construir um catálogo que possa ser atractivo para leitores não especializados. Há obras e autores que conquistariam, indubitavelmente, o seu lugar nas livrarias, nos suplementos (quase sempre renitentes em escreverem sobre BD de um modo tão sério como o fazem sobre outro tipo de livros) e no interesse dos leitores. Há clássicos que qualquer leitor que frequente autores canónicos da literatura leria com surpreendente agrado, querendo conhecer mais. Há autores com um trabalho de tal qualidade formal e intrínseca que chegariam sem dificuldade ao radar dos leitores que compram os livros de uma parte considerável dos catálogos das editoras portuguesas. E são muitos autores, muitos mais do que a ignorância que se revela nas conversas sobre o tema poderiam deixar imaginar. Um editor conhecedor da história da banda desenhada e das suas expressões actuais, disposto a fazer um bom trabalho de comunicação, não encontraria a galinha dos ovos de ouro, ainda por cima em tempos de anunciada crise, mas encontraria, digamos, um pinto saudável, forte e com todas as capacidades para crescer de modo sustentado. Duvidam?


(*)Sara Figueiredo Costa é colaboradora de diversas publicações, entre elas o Expresso e a Time Out, assinando crítica sobre literatura, banda desenhada e ilustração. Mantém o blog Cadeirão Voltaire, onde escreve sobre livros e leituras, e o blog Beco das Imagens, em co-autoria, onde escreve sobre banda desenhada e ilustração.

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