sábado, 1 de dezembro de 2007

Acordo Ortográfico - Irma González

Mais um artigo de opinião sobre o Acordo ortográfico. Desta feita de Irma González [via 1979].

A ortografia de todos
(Irma González [linguista])

Não é preciso sermos sociolinguistas para constatarmos que as portuguesas e os portugueses (académicos e extra-académicos) não aceitam como justificada a actualização da norma ortográfica da língua.

O debate sobre o último acordo ortográfico para os oito países que usam a língua portuguesa (com uma população aproximada de 230 milhões de falantes) tem-se diluído, entre os cidadãos do mundo lusófono no contexto europeu, em dados e informações de cientificidade e rigor linguístico duvidosos.

Isto porque a questão que sobrevoa a problemática da implementação do texto de 1990 - pretensamente unificado ou unificador - é, na minha opinião, a colonização linguística que as pessoas vislumbram nesta ideia de unificação. E digo colonização porque as alterações propostas têm sido avaliadas à luz das transformações que provoca a irrupção da variedade brasileira da língua no espaço europeu, facto que é inequivocamente aliado do crescente desconhecimento das regras do sistema linguístico e do próprio acordo por parte dos portugueses 1 .

Explica-se, deste modo, que em certas notícias se afirme que «[o] acordo ortográfico consagrará de facto, a ser ratificado pelo Parlamento, a substituição do português pelo brasileiro»2 .

Tem-se referido, só para citar dois exemplos, que, em Portugal, passará a escrever-se "fato" em vez de "facto" embora se pronuncie o c , por uma questão de renúncia face aos brasileiros que escrevem e dizem "fato". E, ainda, que «os portugueses deixarão de escrever "húmido"; para usar a nova ortografia - "úmido".3» , em atenção à tradição ortográfica do Brasil. Nada de mais falso4 .

Na verdade, o acordo ortográfico não introduz uma completa homogeneidade na grafia das palavras em língua portuguesa, é um facto, mas tenta reduzir ao mínimo as diferenças existentes entre as suas variedades. Ou seja, tendo uma ortografia similar para todos, pretende-se uma escrita em harmonia com uma norma única, mas apenas nos casos em que a grafia não entra em contradição com a pronúncia culta (norma-padrão) de cada variedade. E esta devida ressalva vale igualmente para o Brasil como para Portugal.

Esse foi, quanto a mim, o desígnio orientador dos investigadores que tiveram a espinhosa missão de redigir o problemático acordo.

Assim, no que a "cedências" específicas de Portugal, PALOP e Timor (tendo este último aderido em 2004) face ao Brasil diz respeito, esta ortografia propõe a eliminação de algumas sequências consonânticas interiores, como cê e pê efectivamente não pronunciados, por exemplo, com o qual palavras como "acção" e "arquitecto"; "adopção" e "Egipto" passarão a ser escritas, respectivamente: "ação" e "arquiteto"; "adoção" e "Egito". Mas não propõe, como se tem ignotamente afirmado, que em vocábulos consagrados nas pronúncias como tal, do tipo "pacto" ou "rapto", se passe incongruentemente a escrever "pato" e "rato"!

Paralelamente, no português do Brasil as alterações específicas passam, efectivamente, pela supressão do trema (não usado em Portugal desde o acordo de 1945) e do diacrítico (acento gráfico) em ditongos ei de palavras graves, presente na ortografia brasileira em vocábulos como "idéia" e "européia". Já a supressão do acento em ditongos oi (do tipo "heróico" e "jibóia") afecta de igual modo a tradição ortográfica de ambos os países (Portugal e Brasil).

O acento circunflexo, igualmente maltratado nos confusos entendimentos sobre o acordo, é também eliminado nas palavras com acento na penúltima sílaba (chamadas paroxítonas ou graves) terminadas em oo , como "vôo" e "enjôo", usado apenas no Brasil, e da 3ª pessoa do presente do indicativo ou do conjuntivo de verbos como "crer", "ler", "dar", "ver" e seus derivados, que passarão a escrever-se, em Portugal como no Brasil, "creem", "leem", "deem" e "veem", respectivamente.

Não se prevê, como é evidente, a eliminação de circunflexo nas 3ªs pessoas do plural das formas verbais "ter" e "vir" no presente do indicativo ("têm" e "vêm", portanto) e suas derivadas «a fim de se distinguirem de tem e vem 3ªs pessoas do singular do presente do indicativo ou 2ªs pessoas do singular do imperativo»5 ; .

Ora, o que interessa reter desta formulação é que resulta insustentável continuar a afirmar que este acordo ortográfico pretende obrigar os portugueses a escrever de um modo que não falam, por se tratar de uma dominação brasileira ou de uma concessão à academia sul-americana, que não pretende aceitar as evidências linguísticas do outro lado do Atlântico. Ainda por cima, com o argumento invocado da liderança política e económica, sem se questionar pelo facto de uma língua não se impor nem pela economia nem pela política, mas sim pelo seu legado cultural6 . Portugal, convém recordar, é quem tem o mérito da criação de um sistema linguístico e da divulgação da matriz de onde surgiram os hábitos verbais e culturais dos brasileiros. A História confirma-nos isso 7.

Em suma, para além das questões de Linguística pura da ortografia em causa (que poderemos discutir mais tarde) - que me obrigam a admitir que certas decisões académicas são, senão inexplicáveis, pelo menos discutíveis - é preciso reconhecer que não há, intrinsecamente, uma intencionalidade de coacção linguística que determine a subjugação do português europeu na expansão neo-imperialista dos brasileiros. Pelo menos desta vez e neste acordo ortográfico, não.

Notas: 1.Vejam-se, a propósito das minhas afirmações, os comentários à implementação do acordo no portal www.sol.sapo.pt , onde aparecem opiniões deste tipo: 1) «[a]agora, sem mais nem para quê, uns traidorezitos apelidados de eruditos querem dar de fiado a estabelecida língua portuguesa a esses pobres indígenas que se estabeleceram na parte mais ocidental da Europa»; 2) « (...) actualmente (ao contrário do séc. XVI) quem é que coloniza quem? até nas telenovelas... e o poderio económico que aí vem? fazem um furo e descobrem 8 mil milhões de barris... o 5º território mais extenso do mundo... "bué" de recursos naturais... Eh pá, isto são factos». Disponível em: http://sol.sapo.pt/PaginaInicial/Cultura/Interior.aspx?content_id=66779

2.Cfr. «Un acuerdo entre siete Estados revoluciona la ortografía de la lengua portuguesa. Las nuevas normas consagrarán de hecho la sustitución del portugués por el brasileño» Por Nicole Guardiola - Lisboa - 07/01/1991- Disponível em www.elpais.com

3.Cfr. «Acordo Ortográfico: O que vai mudar quando estiver em vigor. Os efeitos não serão imediatos - mas a disposição recentemente anunciada pelo governo português de aprovar até ao final do ano o Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa poderá ter desfeito algumas dúvidas, atenuado reticências, dissipado mesmo suspeições de "bloqueio"». Por Lusa - 11/11/2007 - Disponível em www.diariodigital.sapo.pt

4.Note-se que não há referência alguma à palavra "húmido" no texto do acordo. Das supressões de h propostas, nenhuma afecta a ortografia portuguesa e, ainda, são salvaguardados os casos em que, por força da etimologia, há a manutenção do grafema. Logo, o vocábulo em causa, podemos inferir, mantém a ortografia actual. Cfr. Base II - «DO H INICIAL E FINAL», in Texto oficial do Acordo Ortográfico de 1990.

5.Cfr. Base IX, 5º, c) do texto oficial do Acordo Ortográfico de 1990.

6.Se o argumento da superioridade económica como factor de imposição linguística fosse válido, não se explicaria que apesar do potencial militar, científico, etc. dos ingleses do Séc. XIX, o francês continuasse a ser a ÚNICA língua cultural e de "elite" desse século e de boa parte do seguinte, na Inglaterra inclusivamente.

7.Lembre-se que o Marquês de Pombal impôs o uso obrigatório do português em território brasileiro, mas essa imposição foi quase desnecessária pois a língua já se encontrava aí generalizada ao tempo do Padre António Vieira e suas doutrinas. No Oriente no séc. XVI, só para citar outro exemplo da expansão lusófona, quando a língua franca era o português, todo o rei local dominava a língua ou dispunha de um intérprete de português. Porque quem controlava os meios de comunicação, a nível marítimo - para trocas, diplomacia e viagens -, eram os portugueses. D. Manuel I enviava para África e Oriente «mestres de ler e escrever» com o encargo de lá abrirem escolas onde se instruíssem as crianças, e com eles seguiam carregamentos não apenas de catecismos, mas também de livros de leitura em língua portuguesa