sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Entrevista: Vitor Silva Tavares, &Etc (2/3)

Contrariamente ao que dissemos na semana passada, dada a extensão da entrevista a Vitor Silva Tavares, iremos dividir a peça elaborada por Alexandra Lucas Coelho em 3 partes. Aqui fica a segunda. A primeira parte pode ser encontrada aqui.


E a lógica é com o que um livro vende fazer outro.
Sem dúvida que vai auxiliar ao “desastre” que vai ser o outro. Porque se publico pela primeira vez um autor que não é nome conhecido já sei que dificilmente a gente vai vender 200 livros. E se vendermos 200 é porque já aqui estamos há tantos anos que de qualquer modo já houve um pequeno público habituado, ou porque gosta do livrinho, ou de os ter todos, ou porque as capas são muito bonitas, ou porque acham que a casa tem algum rigor. Mas algumas vezes, muitas vezes, esses livritos não chegam para pagar à tipografia. Os autores em geral não gostam de saber destas coisas, nem eu vou dizer a um autor: “Oiça lá, foi um buraco de todo o tamanho.” Deu prejuízo? Já sei que vai dar. Mesmo assim faço. Por coerência. Estou dentro de uma engrenagem que tudo faz para abafar, para fazer desaparecer de vez aventuras desta natureza. Enquanto puder hei-de resistir. Como? Desta maneira. Do ponto de vista pessoal sou um indivíduo baratíssimo desde miúdo. Sei comprar a minha comida, sei fazê-la.

Os seus carapaus.
É uma metáfora. Sendo os meus pais muito miúdos, quando o meu pai já está a fazer as carreiras da Europa, o navio aportava a Alcântara ou a Santos e ficava uma semana em carga e descarga, ia depois para Leixões e podia lá ficar uma semana. Por vezes a minha mãe para poder estar mais tempo com o meu pai acompanhava-o a Leixões, e já tínhamos a guerra, as tais senhas de racionamento, e industriou-me não só a ir à mercaria, à peixaria, ao talho, à padaria, com as tais senhas, como a fazer a minha comida. Melhor, quando nasceu o meu irmão, fazer para mim e para ele. E a minha mãe podia ir sossegada. Logo, faço cozinha desde os cinco, seis, sete anos. Não tendo eu vícios excessivos, a não ser o tabaco...


Quantos cigarros fuma por dia?
Um maço e meio. Indo ao cinema de 15 em 15 dias, ou uma vez por semana, porque gosto muito de cinema, tenho com a minha companheira, que trabalha no aeroporto, um tipo de vida muito estreito do ponto de vista económico, mas com muito conforto. Comemos muito bem lá em casa, as coisas são bem escolhidas, cozinho bem, logo ninguém pode ouvir da minha boca qualquer queixume, coitadinho de mim que sou tão pobrezinho. Não me importo nada de ser pobre. Não trocava a minha posição de modo algum com o Belmiro ou o Berardo. Tenho pena deles. Se o Berardo ou o Belmiro perderem 25 tostões, ou dois euros e meio nessa noite eles não dormem. Ai eu durmo regaladamente.


Do que tenho um bocadinho de pena, e por isso, evito, é de ir a certas livrarias. Poderia ter a tentação deste ou daquele livrito, Evito e custa-me evitar. Eu que faço livros não tenho dinheiro para comprar livros. Mas tirando isso, não me custa nada viver como vivo.


Não lhe custa não viajar?
Agora não. Viajei, sim senhora, até ao 25 de Abril. Veio o 25 de Abril, fartei-me de viajar por Portugal.


Foi para Angola aos 22 anos. Tinha a ideia de fazer documentários. Isso do cinema documental vinha de onde?
Foi uma soma de coisas. A tal minha primeira namorada vai para o Conservatório, e eu venho a conhecer o doutor Fernando Amado.


Diz sempre doutor Fernando Amado.
Digo. Tive sempre por aquele homem uma devoção extraordinária. Eu não tive universidade e sem dúvida que este homem foi um dos meus mestres. E mestre não quer dizer professor. Ele foi meu mestre porque me pôs a mim a saber. Não foi ele que me ensinou. Pôs-me em estado de saber. Por isso, mestre. Fui eu que o adoptei como tal. Um sábio gentil.
Começo com os meus encantamentos de teatro, comprei a prestações o primeiro livro que cá chegou, tradução francesa da “Formação do Actor” de Konstantin Stanislavski. E como já era muito lido, um intelectual, perorava ali na Orion, e tinha então conversas muito mais aprofundadas com o doutor Amado. Tive uma paixão por aquele teatro de amador – que eu sou um amador. Já trabalho há tantos anos, sei fazer o trabalho, do ponto de vista profissional, mas na essência sou um diletante, um amador. É por isso que nem gosto que me chamem editor. Posso fazer tanta coisa, não sou corporativo, nunca fui, calhou dedicar-me mais para aqui, podia ter ido para outro lado. Toquei muitos instrumentos, um deles foi o teatro, mais o cinema.
Ora eu tinha um grande amigo que se suicidou lá em Angola, era filho de gente rica de Benguela. E eu, mais alguns rapazes e raparigas do Conservatório, metemos na cabeça que íamos. Primeiro ia eu, tipo pisteiro, lá ter com ele, para podermos fazer um grupo de teatro itinerante pelos vastos espaços angolanos. A somar ao seguinte: comprando-se uma câmara Paillard de 16 milímetros eu podia fazer um levantamento etnográfico, etnológico e tudo o mais.


Quando é que conheceu o Ruy Duarte de Carvalho?
Mercê dessa estadia, que foi muito intensa. Acabo por o conhecer aqui mas por intermédio do Aníbal Fernandes que conheci lá. O Aníbal estava primeiro no Lobito e depois em Luanda, e eu fui sempre o homem do sul. Já tinha barba e era vermelho, e portanto tinha a alcunha de Fidel porque quando vou em 1959 temos a Sierra Maestra, temos os barbudos. E eu apareci como barbudo em Benguela, nem faz ideia.


Aquilo tudo faliu, não houve dinheiro para a Paillard, embora acabasse por fazer lá um filme em oito milímetros num sítio lindo chamado Caota, “Uma História do Mar”.


Onde está esse filme?
Não faço a mínima ideia. Gostava que tivesse ido parar ao Estado angolano. Em Angola ganhei algum nome no activismo jornalístico-político. Entrei todo Mocidade Portuguesa e saí todo Amílcar Cabral. Porque é que diz que entrou todo Mocidade Portuguesa?Eu fui da Mocidade Portuguesa. Era obrigatório. Mas eu fui mais. A Casa da Mocidade era na Rua do Quelhas [que sobe da Madragoa para a Lapa]. Quando se aproximava o Verão, os dirigentes da Mocidade andavam ali pelo bairro a recrutar rapaziada dizendo assim às mães: “Venham ver as instalações.” Eram magníficas, tinham piscina e tudo. E a cozinha, a alimentação, frangos, bifes. As mães ficavam assim: “Quanto custa?” “Nada.” “Nada?!” E, para o que era sempre um problema das mães naqueles meses de Verão – onde pôr a rapaziada, que só podia estar fatalmente ali na rua –, era um sítio porreiro. Toca a levar a criançada. A minha mãe vai ver aquilo e sai de lá maravilhada. Às duas por três vejo-me encostado a um muro com um tipo a tirar fotografias, e fico lá dentro esses meses que serviam para a formação dos graduados. Saio de lá graduado, comandante de castelo. Aquilo tinha uma parte de instrução quase pré-militar, num quartel da guarda nacional republicana, que no meu caso foi o das Caldas, e lá íamos nós, miúdos de 12, 13 anos, para a instrução militar. Não era de tipo ideológico directo. Era de carácter histórico. A grandeza da nossa pátria, os nossos grandes heróis, D. Nuno Álvares Pereira, a gesta dos descobrimentos, uma educação ultranacionalista, mas só isso, nitidamente. Eu, patriota, acho que já era antes de ir para a Mocidade Portuguesa. Não me pergunte porquê mas eu gostava de ser português. Era a minha terra. E saio da Mocidade Portuguesa com aquilo na cabeça. Eh pá, tínhamos sido dos primeiros povos a anular a escravatura, tínhamos um tipo de convívio com o Ultramar, com o preto, que os outros povos não tinham. É assim que parto daqui. Só que logo no dia em que o barco atraca ao porto do Lobito, e estou eu ainda na amurada, vejo um capataz, necessariamente branco, com uma fileira de pretos, aí uns 30 ou 40, presos com cordas muito grossas nos pulsos e nos tornozelos para a estiva. Pergunto a um engenheiro belga que já tinha experiência de África o que era aquilo e ele diz-me que eram os contratados. “Mas eles estão acorrentados.” “Estão, porque é assim.” Meses depois já eu sabia timtim por timtim o que era essa história dos contratados e como é que a escravatura continuava em Angola, e até o “apartheid” e tudo. Entretanto, as independências estavam a vir de Norte para Sul, andavam no ar. Às duas por três vejo-me obrigado a estar numa repartição da Direcção Geral de Estradas.A inspeccionar cartas de condução sem saber guiar.É uma das minhas obras-primas. Como fui examinador de cartas de condução quando nunca guiei um carro. Isto para dizer que aquilo era um faroeste, até um tipo sem carta pôde estar a examinar. Fiz passar pessoas? Ah, com certeza, aqueles camionistas que quando nasceram já sabiam guiar, esses gajos passaram logo.


Fui animar o Cineclube de Benguela, que estava parado, momento muito bonito porque descobri que havia lá um projector que ainda funcionava e uma quantidade de bobines de filmes do Charlot, daqueles de três minutos, um minuto e meio. Ideia: arranjar um gerador, um lençol e andei por tudo o que era musseque a projectar as fitas do Charlot, toda a noite, porque aquela gente ria-se tanto, a festa era de tal modo que queriam sempre que se repetisse outra vez, e eu ria-me outra vez, gargalhada geral, e aí descobri que o Charlot, sim senhor, era universal.
Entretanto, saí daquela repartição da maneira como saio das coisas, digo até logo e nunca mais ninguém me vê.


Bom, vou morrer aqui cheio de caranguejos? Quando – como já animava o Cineclube e escrevia à borla para o “Intransigente” e para um jornal de Luanda – sou convidado para o “Jornal do Lobito”. Eu detestava o Lobito. Muito inglês, com as sedes das companhias marítimas. Ao passo que Benguela era uma pequena cidade colonial, pacata, com as suas casuarinas, o cheiro intenso a peixe. Os gajos no Lobito davam-me 15 contos, ou lá o que era. Conto à Edite do Lobito e ela vai dizer ao velho dono do “Intransigente”. “Ó senhor Gastão Vinagre, está aqui o Vítor a dizer que vai para o Lobito.” E o velhote, que tinha muita asma, chamou-me. “Ó senhor Vinagre, que remédio é que eu tenho?” “Ó meu filho gostava tanto de ter aqui.” “Quanto é que o senhor me podia pagar?” “Ó meu filho, só te posso dar cinco contos.” “Senhor Vinagre, qual é a minha secretária?” E fui para o lado da Edite, todo contente.O livro que escreveu em Angola, “Hot & etc”, é o quê?Até foi, aqui para nós, um truque. Teve de haver uma “quête” e tudo para me arranjarem um bilhete para me porem a andar, senão era imediatamente preso. E chego aqui praticamente indocumentado.Teve de sair de Angola por motivos políticos?Sim. Eu tenho sido expulso de muitos sítios. Não tinha portanto bilhete de identidade. E aí já com a Célia – minha grande companheira, e que é um dos pilares do etc, companheirismo total e fidelidade total a mim e ao etc – vamos forjar um bilhete de identidade, e era obrigatório lá estar a profissão. Eu não podia pôr jornalista. Não havia sequer Sindicato dos Jornalistas lá em Benguela. Eu queria pôr escritor. E por causa disso, a ver se pegava, como conhecia no Huambo o Garibaldino de Andrade e o Leonel Cosme, que editavam lá uma tal colecção “Imbondeiro”, de livrinhos pequeninos, propus umas historietas que tinha escrito, que se chamavam “Hot & etc” – aí está o etc. Eram os três andamentos do jazz – eu também era maluco por jazz, o que era natural lá em África –, o hot, o cool, e o bop. Como o cool era um texto a atirar ao Joyce, tinha muitas vanguardices, os gajos lá me disseram que a malta podia não perceber nada. Eu disse que também não havia azar, o que eu queria era o livrinho. Então meti uma história pequenina chamada “Uma História sem Importância” muito à Vivaldi, uma Lisboa inventada por mim, toda Veneza, toda Alto de Santa Catarina, toda violeta, enfim, muito lírica, com uns diálogos entre um jovem par de namorados. Para juntar e fazer o livro que foi feito. Mas não tive sorte nenhuma porque isso não pegou. E, sim senhora, teve de se forjar uma assinatura falsa e umas coisas assim para eu ter o BI.


Quando regresso, e atendendo a que tive ligações políticas lá – fui amigo do Luandino Vieira, essas coisas –, a PIDE foi de tal modo que me tiraram a documentação. E depois: “Vamos ver como te portas.” Fiquei com um grande complexo persecutório, via que em todo o lado me estavam a seguir. Volto a dizer, nunca fui do partido comunista, nunca estive em nenhuma organização clandestina, no entanto, do ponto de vista da acção, agi, fiz determinadas coisa. Eu, um estudante universitário e um carpinteiro, que até veio nos jornais e tudo: um dia a cidade de Benguela acorda e descobre que a toponímia estava completamente alterada. Onde dizia Praça 28 de Maio estava Praça Humberto Delgado e por aí fora. Andaram a mudar os nomes todos. Numa só noite. E num cinema com um enorme ecrã que andavam a fazer, escrito em alcatrão, que custa muito a tirar, e com letras deste tamanho [abre os braços]: “Viva a liberdade.”


A PIDE desconfiou que era eu e então deslocou um funcionário, de seu nome Delgado, para tomar conta de mim, que era jornalista no “Intransigente” e sediava num pequeno hotel... isto dizer hotel, enfim... hotel. E o tipo instala-se também no hotel. Mais, à minha mesa. Tu cá, tu lá. Havia momentos em que já tirava a carteira e mostrava o retrato da esposa de 120 quilos que tinha deixado na Beira, e dos filhos, e lacrimejava de saudades. “Senhor Delgado deixe lá isso, não chore”, dizia eu para o PIDE. “Diga-me uma coisa, quando faz anos?” “Dia tal.” “Então nesse dia vou mandar fazer um pano aqui a toda a largura do hotel com ‘Viva Delgado!’” O homem primeiro ria-se e depois “Veja lá, veja lá.” E lá mandava os relatórios dele.


Quando as coisas começam a apertar muito, eles apanham o tal estudante que se porta muito bem e não fala, e o carpinteiro idem – esse sim era do partido comunista. Portanto a malha começou a apertar e a malta: “O primeiro barco que houver pões-te a andar.” Mesmo assim ainda fui chamado, fui interrogado uma data de vezes, até por causa do ‘Intransigente’ e do Rádio Clube de Benguela, porque a parte informativa estava na minha mão, e alguém foi denunciar que eu nos noticiários deitava para o lixo os telegramas da ANI [Agência Nacional de Informação]. Isso serviu também para um interrogatório, se era verdade que eu fazia aquilo, ao que eu disse que era. Porque uma das acusações era não deixar transmitir notícias que dissessem respeito à actividade do Presidente do Conselho Doutor Oliveira Salazar, o que era uma coisa muito grave. Ao que eu disse que era verdade. E safei-me desta maneira – está escrito –: “Parto do princípio que o Doutor Salazar trabalha todos os dias. Ora esses telegramas da ANI dizem que de dois em dois meses Sua Excelência recebeu o senhor subsecretário de Estado disto ou daquilo, dando assim, ou podendo dar, a impressão de que o senhor só trabalha quando os telegramas da ANI dizem. Pelo sim pelo não, não ponho.” É claro, fui para o olho da rua com um processo administrativo. Também não ganhava nenhum, eram coisas à borla.
A certa altura estou no “Intransigente” e começa a guerra. A censura fica sem saber o que fazer, sem instruções de Lisboa. Então, eu em Benguela e o Adelino Tavares da Silva no “Jornal do Congo”, foi um fartar vilanagem, dizíamos o que muito bem queríamos, aproveitando esse momento em que não havia directivas. Ainda o Salazar não tinha feito o tal discurso “tudo para Angola”.


Portanto, eu somava estar a dirigir o Cineclube com estar à frente da informação do Rádio Clube, e parte dos meus artigos eram lidos fora de Angola, em Dacar, e aqui e acolá. Logo estava sob vigilância e era um animal a abater, contando-se que tinha ligações já com terroristas do MPLA, o que era verdade, e também recebia no meu quartinho dissidentes e terroristas caboverdianos e coisas assim, o que também era verdade. Tudo isso conflui na impossibilidade de continuar em Angola.


E posto que tivesse tido uma grande fusão com aquela terra, com aquelas gentes, amigos enormes, uma história comovente:


Eu estava no jornal. E de vez em quando precisava de ir ao meu quartinho buscar um livro ou qualquer coisa para trabalho. Quando lá chegava, deixando sempre as portas e janelas tudo aberto, tinha o quarto inundado daquela pretalhada toda, nomeadamente o Vítor Maria José, que limpava o meu quarto e era muito engraçado. Eu tinha um pequeno “pick up” de plástico Philips em que os tipos aprenderam a mexer, e como tinha aqueles discozinhos de 45 rotações da Bessie Smith, da Mahalia Jackson, chegava lá e estava tudo numa grande alegria a ouvir. Eu entrava, tirava as minhas coisas e ia-me embora. Quem eram eles? Contratados. Como me viam lá às vezes a pintar coisas, um dia vieram com uma grande conversa. O que é que era? Quando acabava o contrato, para aqueles que não eram mortos – embora os contratos fossem muito continuados, mas a certa altura era demais, e eram obrigados a devolvê-los às terras de onde os tinham tirado –, o Estado tinha de arranjar uma camioneta. Juntava aquela gente toda e eles tinham uns paus com umas bandeiras, era um momento de grande alegria porque iam regressar. E então vinham-me pedir a mim para fazer as bandeiras. Andei a pedir pano de lençol por todo o lado e fiz um sol, estrelas, coisas assim muito berrantes, lindíssimas, fui mais considerado por essa gente do que qualquer Picasso ou Miró – espero que isso não apareça no jornal senão o Joe Berardo vai saber onde é que estão essas bandeiras e ainda apareço no Centro Comercial de Belém. De modo que fui encarregado das bandeiras da liberdade.


Um dia chego, e só lá está o tal criado do meu quartinho, muito triste, sentado na cama. “Epá, o que é que se passa? Então agora que vais embora é que estás triste?” Ele começa com uma grande conversa. O que é que ele queria? Levar com ele o disco de 45 rotações da Mahalia Jackson com o retrato dela na capa. Dei-lho.


Mas haveria alguma hipótese deste homem voltar a ouvir o disco? Algures no interior daquele “hinterland” deve estar um disco de Mahalia Jackson jamais ouvido. Mas tinha-o ele dentro do coração, do sangue, da cabeça. Levou aquilo como quem leva um pedacinho de Deus.Quando começou a editora & etc pensou logo neste invulgar formato?Antes de começar a produzir os livros, tínhamos a revista, que já lá tem um quadrado exacto. Fizeram-se ligeiros ajustamentos a partir daí, a escala reduziu. E partiu-se do quadrado. Para simplificar podemos dizer assim: o quadrado é lixado. Forma geométrica tão simples, com o historial que tem, com a carga mítica que tem, o velho enigma da quadratura do círculo, a célebre relação 9/10 que o Almada [Negreiros] relacionava a partir do quadrado. É muito exigente. Parti do quadrado como de um canône. Normalmente, o canône obriga a. Não se pode fugir dele. É uma forma aparentemente rigída. Em princípio, até limitadora de liberdades. Ora bem, quem vai olhar para as centenas de capas dos livros da & etc, todas com um quadrado, há-de ver que esse quadrado em vez de ser limitador, pelo contrário, é um desafio aos criadores e permite uma liberdade de expressão que está patente em cada livrinho. À primeira vista parecem todos iguais, e são todos diferentes, obedecendo todos ao canône.


Parti, portanto, do quadrado. Mas os livros são rectângulos. A questão estava em como inserir o quadrado harmonicamente no rectângulo. Com um lápis e um papel desatei a fazer esboços, lembrando-me de uma conversa que tinha tido muitos anos antes com o mestre Almada, com quem tive íntima relação, quando uma vez, em relação aos painéis [atribuídos a Nuno Gonçalves], ele me perguntou se eu sabia como ele tinha chegado a determinadas conclusões que depois publicou. Eu disse que não. Ele disse: “Cheguei aqui sem cálculo.” Achei bizarro. Podia ser mais uma “boutade”, muito à maneira dos futuristas do início do século XX. Como era possível com um intrincado geométrico tão complexo? Estava eu, portanto, aqui também com um lápis e um papel e juro que não estava a fazer nenhumas contas de cabeça. Pouco a pouco, ao ir achatando o rectângulo, comecei a verificar que o quadrado com aquela dimensão estava a casar-se, a harmonizar-se com aquele rectângulo achatado. E aí sempre sem régua, firmei mais o traço, delimitei melhor o rectângulo. Só depois fui buscar uma régua, e desenhar com o esquadro. Continuei a achar que aquele casamento não ia dar divórcio. Era para a vida – ou para a morte. Encostei, claro, o quadrado à parte de baixo do rectângulo, porque tinha de jogar com o logotipo, o mesmo logotipo, o qual está inserido também num rectângulo, que tem também ele uma determinada dimensão. Pus então o logotipo no sítio que me parecia o certo.
Depois fui medir, para ver se os números também se casavam bem. Ai, casavam-se. Dentro da minha cabeça, casavam-se. Tudo isto tem uma enorme dose de subjectividade. Também eu estive a funcionar sem cálculo. Ou ressaltava dali uma sensação de harmonia, ou não. E no meu espírito tudo se harmonizava, o quadrado com o rectângulo e os numerozinhos.Que eram?Parti de um quadrado de 11/11. E não, fugindo ao que seria clássico nas mitologias numerólógicas, de 10/10. Não me pergunte porquê. Há uma parte instintiva. Mas tenho verificado, por causa de muita gente que pega nos livrinhos, que primeiro dizem que são quadrados. Efectivamente, claro que não são, mas parecem, e toda a gente se mostra encantada com aquilo. Excepto os livreiros – reagiram muito mal, continuam a não reagir muito bem. Ou porque os livrinhos não estão formatados para estante ou porque fogem deliberademente à tal imposição industrial. A medida?15,5 por 17,5. Quem quiser fazer depois brincadeiras com os números pode fazer. E os livros do etc são encapados à mão sem vinco, para não destruir a colocação exacta do quadrado, a harmonia que pretendo que os livrinhos tenham. O outro objectivo é continuar a dar trabalho às encadernadoras. O trabalho de encadernação desde sempre é feminino – nas antigas oficinas até havia uma clara demarcação de espaço. E, muitas vezes, as folhas lá dentro também são dobradas à mão, com a faquinha de marfim. E os livros são cosidos e não colados. Portanto, há aí uma aproximação à artesania, ao artesanato, procurando assim equilibrar a exigência da tecnologia. A impressão hoje é toda “offset”. Eu fui o último editor a fazer livrinhos na antiga Tipografia Ideal, na Calçada de São Francisco, totalmente compostos à mão.

(Continua na próxima semana)