quinta-feira, 30 de abril de 2009

Antologia de poesia na Os Meus Livros

Na Os Meus livros do mês de Abril, João Morales assina um artigo dedicado às antologias de poesia.

«Diversas antologias recentes recolhem a produção poética de autores bem diferentes entre si. Súmulas de vidas, memórias, emoções, invenções, feitas palavras impressas.

Já muito se disse sobre a escrita Herberto Helder, talvez o mais importante poeta português vivo, cuja obra tem conhecido uma unanimidade generalizada. Assim seja lido e contribua para trazer leitores à poesia, parte da vida e dos homens, e não das estantes do deuses.

“Ofício Cantante” (Assírio & Alvim) é a sua mais recente recolha, um livro que tem a particularidade de incluir “A Faca Não Corta o Fogo – Súmula e Inédita”, uma outra antologia, publicada em 2008, rapidamente desaparecida das livrarias, por entre um entusiasmo e saudação colectivos.

Não deixa de ser significativo que uma das mais aclamadas escritas dos nossos dias pertença justamente a um autor que há muito abdicou de toda a actividade pública em torno da sua criação, concentrando toda a energia na busca de uma Linguagem, uma força de expressão para lá das habituais consisões e cedências associadas à escrita – mesmo quando se trata de poesia. Em Herberto, o caudal é parte de si mesmo, um rasto da energia que gerou as palavras e o resultado de uma existência “à margem, certa maneira”, porém, olhando o furacão nos olhos.
Maria Teresa Horta dispensa apresentações. Com uma extensa carreira literária e, ao contrário de Herberto, uma intensa e combativa vida pública, é muitas vezes difícil separar a sua poesia das imagens que nos evocam “Novas Cartas Portuguesas” e outras manifestações de desconforto social. Os seus textos poéticos assombram a dimensão física, trazendo para o confronto a evocação do corpo, a lucidez do espaço, a presença da imagem erótica: “Conduzes na saliva/ um candelabro aceso// um chicote de gozo/ nas palavras// E a seda do meu corpo/ já te cede/ neste odor de borco onde me abres// Sedenta e sequiosa vou sabendo/ demorar o tempo que se espraia/ ao longo dos flancos pois vou tendo// as tuas pernas/ vezes o teu ventre// A tua língua vezes/ os teus dentes// na pressa feroz com que rasgas” (pág. 443). Mas também a força da resistência: “Paz encostada à parede/ como se fosse espingarda/ ou corpo não amistoso/ da marca de uma navalha” (pág. 269).

O feitiço conta o feiticeiro

Nos últimos tempos valter hugo mãe tem conhecido um crescente – e merecido – reconhecimento por parte da maioria da crítica literária. Diga-se, em abono da verdade, que a atribuição do Prémio Literário José Saramago em muito contribuiu para essa situação, sendo um galardão que tem vindo a “anunciar” alguns dos novos nomes da literatura portuguesa – assim foi também como José Luís Peixoto e Gonçalo M. Tavares.

Porém, o lançamento da sua poesia, em volume designado “folclore íntimo” (Cosmorama) passou quase despercebido por entre a azáfama que as agendas literárias impõem. Organizado do mais recente para o mais antigo, o livro mostra-nos um pouco do universo deste autor. Entre o amor e os seus riscos; convivendo com os demónios que habitam as sobras do coração de cada um: “dia de sacrifício, as/ crianças dispostas em fome e/ a repartição dos corpos vivos em/ pânico como/ alimentos aperfeiçoados”.

A crueldade dos homens e mulheres evoca outros nomes, a aparente simplicidade de Adília Lopes ou as imagens geradas em quadros de Paula Rego são alguns dos referentes que se poderiam encontrar, em poemas como “coisinhas preciosas para meter no cu”: “outro dia, o pai pegou fogo ao quarto de brincar./ não avisou. disse, no fim, vai ver o que sobrou das tuas/ coisinhas de meter no cu. o menino não foi ver. morreu./ tombou no chão e morreu”.
Por vezes são pequenas fábulas, entre a parábola e o aparente guião de curtas romagens ao palco da imaginação, como em “livro de maldições”, um conjunto de textos dedicados a diversas pessoas, cúmplices que se adivinham.

O que sobressai desta antologia é uma reverência à crueza dos elementos, a sabedoria do panteísmo alia-se à magia, à catarse dos vivos em agonia por se saberem, justamente seres vivos. As influências musicais, principalmente da chamada dark folk (onde valter acumula algumas amizades) são também um dos motores desta escrita, onde o sexo e a amizade; a feitiçaria e o deslumbramento; a musicalidade e a urgência se conjugam. Assim começa “mil quilómetros além do corpo”: “costumamos ir ao engate às/ sereias, preferindo mesmo as/ mais traçadas de peixe. tiramos as/ pilas para fora e esperamos que mordam,/ incautas, convencidas de que lhes/ ofereceremos um prazer descomprometido e/ simples típico dos encontros à beira da/ água (…)”.

Trabalhos colectivos

Terminamos com duas publicações colectivas, vindas de tempos diferentes. “Antologia da Poesia Grega Clássica” (Portugália Editora), um trabalho de tradução de Albano Martins – que assina igualmente as notas complementares – é um hino ao cânone que evoca, uma realidade poética que se funde com o teatro, com a narrativa, uma registo entre o épico e o evocativo, misto de eco das actividades humanas e intenções divinas.

A guerra e os amores pautam discursos e lamentos, por entre tiradas filosóficas ou simples e epicuristas considerações, como esta, traduzida da versão de Pierre Louys: “Uma romã entreaberta, um marmelo coberto/ com a penugem inicial, um figo/ com umbigo e pele engelhada, um cacho/ escuro de bagos cerrados donde jorra/ o vinho como duma fonte e uma noz/ despojada da sua casca verde – eis o que,/ retirado das suas árvores, o hortelão oferece/ como sacrifício a este Priapo/ rústico e trabalhado num só bloco.” (pág. 436).

E terminamos sob o signo da paixão, com uma proposta da responsabilidade de Inês ramos, que procedeu à recolha, selecção e organização dos textos que compõem “Os Dias do Amor – Um Poema Para cada dia do Ano” (Ministério dos Livros). O alinhamento é extremamente eclético, agrupando famosos e quase anónimos, contemporâneos e antigos, passando pelas mais diversas estéticas e enfoques. Múltiplo e indizível é pois o amor.

Impossível reproduzir uma parte significativa de uma obra tão extensa, mas, nessa incapacidade, aqui ficam dois exemplos. “1. Olho vagamente o leito/ e os cabelos tomam o rumo da foz// tudo, enquanto pardas violetas deslizam sobre os dedos/ e os salgueiros tenros cintilam// batidos pelo sol e pelo vento// 2. Deita-te a meu lado/ até que a aurora nasça natural// e o orvalho se evapore/ na manhã// 3. Como esquecer-te nas manhãs/ que têm o teu sorriso// e o som do mar/ chega na boca dum búzio// 4. Este querer-te nos braços/ é olhar e sorrir o corpo// sob o sol branco/ do desprendimento// humano.// 5. Volúpia d’encanto ou utopia/ tanger de lira oculta o canto… (Aurelino Costa; n. 1956; Portugal).

Ou o bem conhecido trovador, Manuel Alegre: “Mais que o teu corpo quero o teu pudor/ quero o destino e quero a alma e quero a estrela/ e quero o teu prazer e a tua dor/ o crepúsculo e a aurora e a caravela/ para o amor que fica alam do amor.” (extracto inicial de “Mais que o teu Corpo”).»
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